domingo, 22 de setembro de 2019

CRUZ, COLISEU E FOGUEIRA


Cruz 


É sexta-feira, as famílias saem de suas casas às pressas, eufóricas, animadas. Homens, mulheres e crianças lotam as ruas e de longe se ouve a algazarra, os gritos, assovios e o frenesi da turba, que comemora com alegria e satisfação. É dia de crucificação.

Desta vez são os judeus que fazem justiça, em defesa de suas famílias, de suas crianças, costumes, tradições, religião, em defesa do seu deus, do seu passado e do seu futuro. Querem ver morrer na cruz o homem que tem ameaçado os bons costumes do povo de bem com ideias diferentes.

É dia de festa, as ruas estão cheias e todo o povo convicto e convencido grita alegria, troça e raiva, enquanto uma mãe sofre, irmãos sofrem, amigos sofrem, pelo açoite, o prego, a cruz e a morte do sentenciado.

A justiça foi feita e o povo está satisfeito, pleno da sua certeza.


Coliseu


É domingo, dia de espetáculo. As famílias saem de casa apressadas, eufóricas e alegres, levando suas crianças para se divertirem. Vamos todos ao teatro.

Cinquenta mil pessoas lotam as arquibancadas de mármore branco do maravilhoso teatro, que levou oito anos para ser construído. A plateia está enlouquecida, há muita alegria, gritos, urros, aplausos, os pais levantam as crianças para verem melhor. As famílias estão reunidas, a ocasião foi especialmente promovida pelo imperador para fazer justiça e divertir a população que o apoia e ama ainda mais.

Os portões se abrem, um pobre cristão maltrapilho e faminto aparece assustado, não saber o que fazer, não tem para onde ir. O outro portão se abre e de lá sai um leão faminto, mas com todo o seu poder e força, pronto para saciar a sua fome de carne e a fome de espetáculo da plateia. A fera avança, ataca o homem e arranca as suas vísceras, devorando-as. Homens, mulheres e crianças nas arquibancadas vão ao delírio, gritam e uivam, aplaudem e se sentem seguras, protegidas e satisfeitas. Plenas da suas certezas, voltarão para casa agradecidas e com a consciência tranquila, prontas para mais uma semana de trabalho, afinal, o imperador é bom e está limpado a sociedade romana daquilo que ameaça seus costumes, suas tradições, suas riquezas e suas famílias.

Fogueira


É uma quarta-feira, não tem ninguém em casa, até parece que a cidade foi abandonada. Mas estão todos lá, a rua principal está cheia de gente, estão todos agitados, gritando com euforia e empunhando suas tochas, porque já é noite.

Ouve-se alegria e raiva, o nome de deus e morte, morte aos que são contra deus, aos que blasfemam, aos que contrariam a santa igreja, o santo Papa, o santo inquisidor.

Ela ameaça a fé, a tradição, a religião e a família, foi decidido que ela é uma bruxa e que merece a fogueira, graças a deus. E por isso o povo está em júbilo, se alegra no senhor seu deus, que pune os pecadores, os hereges, os judeus, os protestantes, os homossexuais, os iluministas, os adúlteros, os rebeldes.

A fogueira está montada na frente do templo, amarram a mulher apavorada ao madeiro, a multidão se acumula ao redor aos gritos de bruxa! Herege! Satanás! Queime no inferno! Há os que riem e fazem piada.

O carrasco aproxima sua tocha da lenha seca, o fogo começa a arder, as vestes da mulher ficam em chamas, ela grita, ela grita, ela grita ainda mais, sua pele começa a derreter, seu cabelo queima, seus olhos derramam pelo rosto em chamas e fritam. Um forte cheiro de churrasco se espalha no ar.

A multidão também grita, alegre, feliz e aliviada, plena de sua certeza, porque agora o mundo está livre do demônio. As famílias, a moral, as crianças, a fé, os costumes e tradições, a religião e o capital, por obra de deus e da igreja, estão protegidos. Todos afinal estão salvos. Amém. 

Arenas modernas


Isso é parte da natureza humana: o ódio, a frieza, a demência, o gosto pelo castigo ao diferente, pela contenda, pela condenação pura e simples do outro, com troça e alegria, com júbilo e frenesi, em nome da família, dos costumes, da moral, de algum deus ou religião, de um pretenso bem inquestionável.

Injustificável é, mas está bem registrada em toda a nossa história. Sempre adoramos as cruzes nos Gólgotas, as vias sacras, os coliseus, as fogueiras, as inquisições, os escândalos, o sensacionalismo, os escárnios, a troça, os grupos fechados, as fofocas, os comentários violentos, os ataques, a humilhação alheia, a derrota do outro, o vexame, o bullying. Por isso têm audiência as novelas, os jornais sensacionalistas, a notícias de crimes, os acidentes com mortos, os programas que expõe intimidades, por isso pedimos o linchamento, o massacre, a tortura e o castigo, mais do que a paz.

Recebida a devida autorização, escancaramos no coliseu real e virtual da nossa sociedade, nas fogueiras digitais, nos gólgotas eletrônicos, nos tribunais da nossa santa inquisição interna.

De tempos em tempos, na história da humanidade, grupos humanos, de fervor inquisitorial, receberam autorização e autoridade para se divertirem, queimando. Por mais que os discursos proclamem, isto nada tem a ver com defesa de qualquer bem, é apenas a satisfação do sadismo psicopata, a compensação por uma frustração existencial íntima e profunda, a revelação da miséria contida neste tipo de alma.

Na crucificação, nos espetáculos macabros do coliseu romano, nas condenações e fogueiras da inquisição e em vários outros eventos históricos semelhantes sempre está presente o mesmo pretexto, que é o que é, apenas pretexto.

Estas caraterísticas ficam claras ao serem olhadas de fora, com distanciamento, geralmente depois do seu tempo. É possível ver então o conjunto de pretextos. Geralmente é a defesa de valores, da pátria, de um deus, da religião, da família, dos mais fracos, dos oprimidos, do povo, do capital, das riquezas. E isto independe do lado, da religião, da ideologia, da classe social, do poder aquisitivo, da nação.

Em todas as épocas há aqueles poucos que não se deixam levar, que não compactuam, que não aceitam a autorização para a barbárie, que não disparam com a boiada ao abrir da porteira.

Este deve ser um seleto grupo de seres humanos especiais, que valeria a pena conhecer.

Porque mesmo aquele que está sendo massacrado e reclama da situação, se for chamado a matar e se lhe for dada a oportunidade, também mata com gosto, porque internamente já condenou o seu algoz. Somos bem capazes de fazer aquilo que muito condenamos, e quanto mais condenamos, mais capazes somos de fazer o mesmo.

É o que a história da humanidade mostra, aquele que foi crucificado, passou a crucificar, o que foi queimado quer queimar, o que foi ridicularizado ridicularizou, o que foi escravizado quer escravizar. Estas coisas aconteceram assim no Oriente Médio, na Europa, na África, na Ásia, na América, com quase todos os povos que se dizem civilizados. Embora alguns tenham aprendido mais rápido e evoluído mais e outros ainda não.

Talvez este tipo de barbárie hipocritamente justificada e travestida de defesa do bem só não tenha ocorrido com povos tidos como bárbaros, classificados por nós como selvagens e pagãos.

É possível que não haja nisso necessariamente viés de bem ou de mal, apenas a condição humana e sua natureza se manifestando.

Sabendo disso, de tempos em tempos alguns homens utilizam o marketing do ódio, da barbárie e da hipocrisia em seus projetos de poder. E funciona muito bem, quanto mais violento e insano mais funciona, desde que bem mascarado de luta contra o mal, de guerra a algum inimigo imaginário que ameaça algum tipo de valor.

O marketing do ódio, da violência, da barbárie, da hipocrisia e da imbecilidade arrasta multidões a qualquer massacre, é hipnotizante, capaz de levar um povo a apoiar o extermínio de adultos, idosos e crianças, com prazer e sorriso no rosto e com certeza absoluta da correção dos seus atos.

Um comentário:

  1. Quero pedir perdão à Diana Costa por ter excluído um comentário dela acidentalmente. Adorei o comentário, fiquei muito feliz por recebê-lo e por saber que um texto meu lhe serviu, para o seu bem. Estou tentando recuperá-lo, fiquei muito triste de tê-lo perdido. Desculpa Diana.

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