sábado, 28 de setembro de 2019

O QUE É DESINFORMAÇÃO E COMO SE PROTEGER



 Desinformação: a psicodelia dos caretas



A desinformação não é o mesmo que ignorância e também não é apenas uma mentira ou fake News, é muito pior.

Enquanto a ignorância é desconhecimento, é ausência da informação, a desinformação é a distorção proposital e planejada da informação com propósito de enganar quem a consumir, é a negação da verdade através de uma narrativa facciosa.

A ignorância pode ser superada facilmente com informação, estudo, pesquisa e experiência.

A desinformação não, porque a informação distorcida sacia a ignorância, preenche um espaço que estava vazio, mas vem carregada da intenção de quem a colocou ali, de quem a elaborou e não daquele que ignora, que deveria ir livremente e de mente aberta em busca de informação.

O processo para reverter este quadro é um processo de cura. É necessário retirar uma informação distorcida do convencimento e fazer a mente se abrir ao novo, com curiosidade e criticidade.

E este é um processo mais difícil do que simplesmente informar, porque a desinformação utiliza-se de emoções e anseios, de dúvidas e principalmente dos medos de uma pessoa ou grupo social.

Um exemplo.



Suponhamos que os Estados Unidos quisessem tomar o Canadá. Para isso precisaria de apoio e união de todas as instituições governamentais, de segurança, financeiras e da população americana em torno deste projeto de poder. 

Iniciaria, portanto, uma campanha que criasse uma imagem horrível do Canadá, do governo canadense e da sua população, utilizando dos piores medos e das maiores preocupações dos americanos. Criaria ódio aos canadenses, distorcendo fatos, criando fatos e afastando os americanos da verdade, por isso é desinformação.

Na desinformação muitas vezes são aproveitadas situações reais, porém distorcidas, modificadas, exageradas, acrescidas ou subtraídas de elementos de forma a descaracterizá-la, por isso é desinformação.

A campanha dos Estados Unidos contra o Canadá se daria no campo jornalístico, institucional, de forma geral e localizada, mas também através das artes e de outros meios. Por exemplo, poderiam ser financiados filmes em que o vilão seria canadense, a tragédia seria canadense, a origem do mal seria em território canadense.

Assim, em pouco tempo, a maioria do povo americano estaria suplicando por uma invasão ao Canadá e veria esta medida como necessária e urgente para salvar os Estados Unidos e cada cidadão americano de um verdadeiro terror.

Desinformação e poder



A desinformação serve ao poder, a projetos de poder, a poderes constituídos, a manutenção de poderes.

É certo que este tipo de estratégia não é nada novo na história da humanidade. O nazismo a utilizou para demonizar os judeus e todos os que resolveu perseguir e eliminar.

Mas o que antes dependia da circulação dos jornais impressos, de transporte lento ou dos correios, hoje está potencializado pela internet e pela inteligência artificial. O estrago é bem maior e mais profundo.

A desinformação é uma estratégia, fake News e mentiras são apenas soldados dela, parte de algo maior.

Se a NASA tivesse contato com seres de outros planetas e quisesse esconder isso da população mundial, o que ela faria?

Criaria uma narrativa de que a NASA tem contato com seres de outros planetas. Porém uma narrativa completamente inverossímil, com elementos que seduzissem as pessoas, mas como ficção, diversão ou como uma forma de satisfazer frustrações, medos ou esquecer da mediocridade da própria vida. Jamais estas pessoas acreditariam se alguém lhes dissesse que havia outra verdade.

Os maiores instrumentos de desinformação da atualidade são as redes sociais e principalmente os grupos temáticos. Ali a falsa narrativa é compartilhada por alguém conhecido, um amigo, alguém que se admira, sendo difícil crer que se trata de algo falso.

Foram estes instrumentos, nas mãos de empresas e de mercenários, que influenciaram as últimas eleições nos EUA, no Brasil e em outros países. Este desserviço tem causado linchamento, físico e virtual, de pessoas inocentes, tem interferido no trabalho de forças de segurança, governos e de proteção à vida.

Algumas pessoas, ignorante no assunto, passam as mensagens com intenção de ajudar do próximo, e acabam ajudando a proliferar uma informação falsa, além de estar afastando a pessoa da verdade. Porém outras pessoas sabem o que estão fazendo e fazem por dinheiro, por maldade, ódio, mediocridade e pelas mais absurdas motivações, incluindo o fanatismo religioso. Inclusive as religiões são por excelência instrumentos de desinformação.

A desinformação cria a ilusão de que a pessoa sabe a verdade e isso é mil vezes pior do que a ignorância e a dúvida.

As deep fakes



Pedro Burgos, em um artigo da Época, de 20 de setembro de 2019, afirma que os americanos já estão preocupados com o processo eleitoral de 2020 e que a dificuldade de monitorar as atividades de desinformação nas redes nem é a maior das preocupações.

Diz Burgos que “há uma grande preocupação com as “realidades sintéticas”, como os deep fakes e áudios falsos. A tecnologia que permite criar vídeos falsos convincentes a partir de gravações está avançando velozmente. Mesma coisa para as mensagens em áudio. Em um site que já foi tirado do ar, era possível digitar um texto qualquer e ouvir uma personalidade política lendo, com entonação, trejeito e sotaque de volta. É algo assustador, especialmente para nós brasileiros, que nos impressionamos com imitações toscas compartilhadas por WhatsApp. Como as pessoas que combatem boatos dirão ao público que não acredite automaticamente em vídeos, áudios ou imagens?”

Alguns têm chamado estes tempos de desinformação de pós-verdade, seja lá o que isso signifique. Isto se deve à dificuldade cada vez maior de definir o que é verdade e o que não é e à desvalorização da versão que mais poderia se aproximar de algo verdadeiro, apoiada em bases científicas, por exemplo, diante de uma falácia.

Como se proteger?



A melhor maneira de se proteger contra a desinformação é não assumir como verdade absoluta tudo, ou nada, que se recebe pela internet e por outros meios. A pesquisa e o reconhecimento de fontes confiáveis tornou-se crucial neste festival de mentiras e factoides que nos bombardeia diariamente.

As fontes mais confiáveis são as acadêmicas, surgidas de pesquisas sérias, longas e multidisciplinares, referendadas por autoridades no assunto em questão. Mas não só.

É importante comparar teorias, autores e experiências, buscar opinião contrária, despir-se do ódio, do preconceito, da frustração e da mediocridade.

E ainda é válida a boa e velha intuição.


BURGOS, Pedro. A guerra contra a desinformação deve ficar ainda mais difícil. Época, 2019. Disponível em https://epoca.globo.com/coluna-a-guerra-contra-desinformacao-deve-ficar-ainda-mais-dificil-23961914


domingo, 22 de setembro de 2019

CRUZ, COLISEU E FOGUEIRA


Cruz 


É sexta-feira, as famílias saem de suas casas às pressas, eufóricas, animadas. Homens, mulheres e crianças lotam as ruas e de longe se ouve a algazarra, os gritos, assovios e o frenesi da turba, que comemora com alegria e satisfação. É dia de crucificação.

Desta vez são os judeus que fazem justiça, em defesa de suas famílias, de suas crianças, costumes, tradições, religião, em defesa do seu deus, do seu passado e do seu futuro. Querem ver morrer na cruz o homem que tem ameaçado os bons costumes do povo de bem com ideias diferentes.

É dia de festa, as ruas estão cheias e todo o povo convicto e convencido grita alegria, troça e raiva, enquanto uma mãe sofre, irmãos sofrem, amigos sofrem, pelo açoite, o prego, a cruz e a morte do sentenciado.

A justiça foi feita e o povo está satisfeito, pleno da sua certeza.


Coliseu


É domingo, dia de espetáculo. As famílias saem de casa apressadas, eufóricas e alegres, levando suas crianças para se divertirem. Vamos todos ao teatro.

Cinquenta mil pessoas lotam as arquibancadas de mármore branco do maravilhoso teatro, que levou oito anos para ser construído. A plateia está enlouquecida, há muita alegria, gritos, urros, aplausos, os pais levantam as crianças para verem melhor. As famílias estão reunidas, a ocasião foi especialmente promovida pelo imperador para fazer justiça e divertir a população que o apoia e ama ainda mais.

Os portões se abrem, um pobre cristão maltrapilho e faminto aparece assustado, não saber o que fazer, não tem para onde ir. O outro portão se abre e de lá sai um leão faminto, mas com todo o seu poder e força, pronto para saciar a sua fome de carne e a fome de espetáculo da plateia. A fera avança, ataca o homem e arranca as suas vísceras, devorando-as. Homens, mulheres e crianças nas arquibancadas vão ao delírio, gritam e uivam, aplaudem e se sentem seguras, protegidas e satisfeitas. Plenas da suas certezas, voltarão para casa agradecidas e com a consciência tranquila, prontas para mais uma semana de trabalho, afinal, o imperador é bom e está limpado a sociedade romana daquilo que ameaça seus costumes, suas tradições, suas riquezas e suas famílias.

Fogueira


É uma quarta-feira, não tem ninguém em casa, até parece que a cidade foi abandonada. Mas estão todos lá, a rua principal está cheia de gente, estão todos agitados, gritando com euforia e empunhando suas tochas, porque já é noite.

Ouve-se alegria e raiva, o nome de deus e morte, morte aos que são contra deus, aos que blasfemam, aos que contrariam a santa igreja, o santo Papa, o santo inquisidor.

Ela ameaça a fé, a tradição, a religião e a família, foi decidido que ela é uma bruxa e que merece a fogueira, graças a deus. E por isso o povo está em júbilo, se alegra no senhor seu deus, que pune os pecadores, os hereges, os judeus, os protestantes, os homossexuais, os iluministas, os adúlteros, os rebeldes.

A fogueira está montada na frente do templo, amarram a mulher apavorada ao madeiro, a multidão se acumula ao redor aos gritos de bruxa! Herege! Satanás! Queime no inferno! Há os que riem e fazem piada.

O carrasco aproxima sua tocha da lenha seca, o fogo começa a arder, as vestes da mulher ficam em chamas, ela grita, ela grita, ela grita ainda mais, sua pele começa a derreter, seu cabelo queima, seus olhos derramam pelo rosto em chamas e fritam. Um forte cheiro de churrasco se espalha no ar.

A multidão também grita, alegre, feliz e aliviada, plena de sua certeza, porque agora o mundo está livre do demônio. As famílias, a moral, as crianças, a fé, os costumes e tradições, a religião e o capital, por obra de deus e da igreja, estão protegidos. Todos afinal estão salvos. Amém. 

Arenas modernas


Isso é parte da natureza humana: o ódio, a frieza, a demência, o gosto pelo castigo ao diferente, pela contenda, pela condenação pura e simples do outro, com troça e alegria, com júbilo e frenesi, em nome da família, dos costumes, da moral, de algum deus ou religião, de um pretenso bem inquestionável.

Injustificável é, mas está bem registrada em toda a nossa história. Sempre adoramos as cruzes nos Gólgotas, as vias sacras, os coliseus, as fogueiras, as inquisições, os escândalos, o sensacionalismo, os escárnios, a troça, os grupos fechados, as fofocas, os comentários violentos, os ataques, a humilhação alheia, a derrota do outro, o vexame, o bullying. Por isso têm audiência as novelas, os jornais sensacionalistas, a notícias de crimes, os acidentes com mortos, os programas que expõe intimidades, por isso pedimos o linchamento, o massacre, a tortura e o castigo, mais do que a paz.

Recebida a devida autorização, escancaramos no coliseu real e virtual da nossa sociedade, nas fogueiras digitais, nos gólgotas eletrônicos, nos tribunais da nossa santa inquisição interna.

De tempos em tempos, na história da humanidade, grupos humanos, de fervor inquisitorial, receberam autorização e autoridade para se divertirem, queimando. Por mais que os discursos proclamem, isto nada tem a ver com defesa de qualquer bem, é apenas a satisfação do sadismo psicopata, a compensação por uma frustração existencial íntima e profunda, a revelação da miséria contida neste tipo de alma.

Na crucificação, nos espetáculos macabros do coliseu romano, nas condenações e fogueiras da inquisição e em vários outros eventos históricos semelhantes sempre está presente o mesmo pretexto, que é o que é, apenas pretexto.

Estas caraterísticas ficam claras ao serem olhadas de fora, com distanciamento, geralmente depois do seu tempo. É possível ver então o conjunto de pretextos. Geralmente é a defesa de valores, da pátria, de um deus, da religião, da família, dos mais fracos, dos oprimidos, do povo, do capital, das riquezas. E isto independe do lado, da religião, da ideologia, da classe social, do poder aquisitivo, da nação.

Em todas as épocas há aqueles poucos que não se deixam levar, que não compactuam, que não aceitam a autorização para a barbárie, que não disparam com a boiada ao abrir da porteira.

Este deve ser um seleto grupo de seres humanos especiais, que valeria a pena conhecer.

Porque mesmo aquele que está sendo massacrado e reclama da situação, se for chamado a matar e se lhe for dada a oportunidade, também mata com gosto, porque internamente já condenou o seu algoz. Somos bem capazes de fazer aquilo que muito condenamos, e quanto mais condenamos, mais capazes somos de fazer o mesmo.

É o que a história da humanidade mostra, aquele que foi crucificado, passou a crucificar, o que foi queimado quer queimar, o que foi ridicularizado ridicularizou, o que foi escravizado quer escravizar. Estas coisas aconteceram assim no Oriente Médio, na Europa, na África, na Ásia, na América, com quase todos os povos que se dizem civilizados. Embora alguns tenham aprendido mais rápido e evoluído mais e outros ainda não.

Talvez este tipo de barbárie hipocritamente justificada e travestida de defesa do bem só não tenha ocorrido com povos tidos como bárbaros, classificados por nós como selvagens e pagãos.

É possível que não haja nisso necessariamente viés de bem ou de mal, apenas a condição humana e sua natureza se manifestando.

Sabendo disso, de tempos em tempos alguns homens utilizam o marketing do ódio, da barbárie e da hipocrisia em seus projetos de poder. E funciona muito bem, quanto mais violento e insano mais funciona, desde que bem mascarado de luta contra o mal, de guerra a algum inimigo imaginário que ameaça algum tipo de valor.

O marketing do ódio, da violência, da barbárie, da hipocrisia e da imbecilidade arrasta multidões a qualquer massacre, é hipnotizante, capaz de levar um povo a apoiar o extermínio de adultos, idosos e crianças, com prazer e sorriso no rosto e com certeza absoluta da correção dos seus atos.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

GIRASSÓIS NA JANELA



Uma história sobre maturidade



A casa era de madeira, no meio de um extenso e verde gramado. O mês era setembro.

Ao abrir a janela do seu quarto, que ficava virada para o leste, Gabriel se deparou com um girassol em flor, com uma única flor.

O girassol


E assim foi pelos próximos dias, sempre que abria a janela pela manhã o girassol estava de costas para ele e de frente para o sol.

A partir do meio dia, o sol caminhava para oeste e o girassol ia junto. Acompanhando o sol, o girassol virava de frente para a janela de Gabriel.
Todo dia era assim, menos quando o céu estava nublado, aí o girassol ficava na dele, não se abria muito, como se estivesse introspectivo.

À noite, o girassol dormia, descansava do seu trabalho diário de andar atrás do sol, mas na manhã seguinte lá estava ele novamente, virado para o nascer do sol, e à medida que o sol brilhava e aquecia o girassol se abria mais.

Mas chegou um dia em que o girassol não acordou pela manhã, não quis ver o sol, não se abriu, cumpriu seu ciclo, morreu, deixando dezenas de sementes.

Gabriel

Assim era ele, pensador, pensativo, algumas pessoas diziam que era por isso que Gabriel parecia triste.

Não teve uma vida fácil e por muito tempo até se considerou uma pessoa infeliz e, às vezes, um fracassado.

Mas nos últimos anos vinha sentindo uma mudança interior que não sabia explicar direito.

Ao observar o comportamento do girassol naqueles dias, Gabriel ficou a pensar e a refletir sobre a sua própria vida.

Percebeu que de uns tempos pra cá não tinha mais tanta necessidade de falar, de expressar seu pensamento e suas opiniões. Apenas queria experimentar a vida, não queria convencer ninguém de nada, só queria desfrutar do seu caminho, mais ou menos como aquele girassol.

Gabriel notou que fazia tempo que passou a andar mais devagar, com mais calma, não tinha mais porque correr, perdeu a pressa.

Surpreendeu-se com o equilíbrio que seu humor vinha apresentando e com a falta de interesse em julgar os outros, em conceituar, rotular e explicar tudo o que via.

Gabriel havia se tornado mais atento e delicado em seus movimentos e no trato com as pessoas, preferindo sempre o calor e a luz da serenidade e do equilíbrio.

Deixou de se preocupar com a idade, com os erros, com reconhecimento, com frustrações e contrariedades, com incertezas e com a opinião alheia. Até se pegou rindo de si mesmo, do próprio ridículo.

Foi assim que Gabriel percebeu que estava amadurecendo, mas que usava mais bengalas na juventude do que depois de velho. Quando era jovem usava bengalas para a alma e para as emoções, procurou drogas, cigarro, bebidas, paixões, terapias e religiões.

Mas agora parecia que corpo e alma percorriam caminhos contrários. Quanto mais o corpo se aproximava da morte, mais viva a alma se tornava. E quanto mais jovem e vigoroso era seu corpo, menos vida parecia haver na alma, que era mais instável, insatisfeita, ranzinza e rabugenta.


Ao sentir seu corpo envelhecendo, sentia também o sol da juventude a encher-lhe a alma. E seguia docemente a sua trajetória, sem sobressaltos nem desesperos.

Ora olhando para o leste, ora se virando para oeste, Gabriel seguia o sol e aproveitava a sua luz para apreciar as belezas naturais, como um girassol na janela.

Ao cair da noite, ou nos dias de chuva, Gabriel gostava de sossegar e ler, ficar confortável e pensar, levemente introspectivo, mas sem aquela tristeza dilacerante da juventude.

Nos dias de ventos fortes, Gabriel desfrutava sem reclamar, sentia os odores que o vento carregava e a carícia que ele lhe fazia. Apesar da idade, Gabriel tonara-se mais maleável, deixando para traz a rigidez da juventude. Aprendeu a dançar com a vida, como o girassol no vento, com graça e harmonia.

Gabriel percebeu que, como o girassol ao morrer, deixaria sementes, esperança e possibilidade de vida nova.

Sabia que não acontecia assim com todas as pessoas, então entendeu que tivera uma boa vida, porque aprendeu, e não foi em vão o tempo que passou sob o sol.

Não desejava partir e não recusava a partida, alcançou uma calma e uma serenidade próprias daqueles que sabem que não precisam, não querem nem podem controlar.

Entendeu, por fim, que a vida não é para ser forçada, rotulada, controlada e que seu verdadeiro sentido é só ela mesma, está em si mesma, naquilo que é, do jeito que é.

Entendeu que poderia ter poupado muito esforço e sofrimento e que poderia ter desfrutado da vida de forma mais leve, mas afinal, foi o que foi e exatamente o que tinha que ser.

Como aquele girassol na sua janela, oferecendo-lhe um espetáculo diário, por um tempo determinado, exatamente como tinha que ser.



terça-feira, 3 de setembro de 2019

O PREGADOR


Ele tinha o direito de dizer tudo o que queria, e dizia.


 Havia um homem que pautava a sua vida pelo princípio da liberdade, da autenticidade e da permissão.


Sim, ele se permitia, acha importante se permitir dizer com autenticidade e sinceridade tudo o que desejava dizer e até o que não desejava, mas que lhe vinha à cabeça, ou melhor, que lhe vinha à boca, nem sempre à cabeça.

Vamos dar um nome fictício a este homem em respeito ao seu direito de anonimato, vamos chamá-lo de senhor Prolixo.

O senhor Prolixo orgulhava-se de falar a verdade na cara das pessoas, fosse quem fosse, ele não mentia, não disfarçava, era sincero.

Ele entendia que guardar coisas e deixar de dizer algo poderia lhe fazer mal e ainda tirava a autenticidade das relações.

Quando alguém achava ruim e reclamava com ele, não entendia como as pessoas não gostavam que ele fosse sincero. Ele não falava pelas costas e não levava desaforo para casa.

Com o passar do tempo Prolixo percebeu que algumas pessoas começaram a se afastar dele, começou a perder amigos, a perder namoradas, a perder empregos, a afastar parentes, a ver pessoas feridas, machucadas e até chorando e tristes por causa das suas palavras.

Quando se deu conta, Prolixo estava vivendo sozinho, estava isolado, não tinha mais amigos nem ninguém que conseguisse conviver com ele, pois sabiam que em algum momento ele os feriria com suas palavras.

O Senhor Prolixo pensava: “que gente chata, que gente molenga e sensível, não se pode dizer nada, se ofendem com tudo”.

Mas um dia ele cansou de viver sozinho e de machucar as pessoas. Tentou se controlar, mas não conseguia, acabava dizendo. Depois pedia desculpas e muitos o desculpavam com sinceridade, mas ainda assim não conseguia mais reaver a amizade, ou o amor, da mesma forma. E acabava ofendendo novamente.

Então foi falar com seu avô, um velho carpinteiro, porque com seu pai ele não podia mais falar, havia ferido e magoado o pai muitas vezes.

Naquela época, as pessoas mais velhas, mais experientes, que já tinham vivido bastante, como o pai e o avô, serviam como o coach de hoje em dia. Quando alguém estava com uma dúvida, com algum problema, precisando de um rumo, se aconselhava com alguém mais velho, com vivência, com experiência de vida.

Então o velho vovô carpinteiro ouviu o neto, suas histórias, suas queixas e explicações e o levou até uma parede de madeira que ele mesmo havia construído.

Mostrou a parede de madeira nova ao neto, entregou-lhe um maço de pregos e um martelo e mandou que ele pregasse pregos por toda aquela parede, de cima abaixo, um ao lado do outro, por toda a extensão.

E o velho saiu, deixando Prolixo sozinho, pregando pregos.

Depois de um tempo, Prolixo terminou de pregar e avisou seu avô, que o acompanhou até a parede. Enquanto os dois Olhavam para ela, o velho perguntou o que ele via, e ele respondeu que a parede estava cheia de pregos.

Então o velho ordenou que ele arrancasse todos os pregos, e saiu.
Prolixo já estava irritado, quase dizendo umas verdades ao seu avô, mas também estava muito curioso para saber onde ia dar aquilo tudo. 

Então arrancou todos os pregos e chamou o seu avô novamente, que lhe perguntou:

- o que você está vendo?

 E o neto respondeu, irritado:

- Estou vendo uma parede cheia de furos, ora!

E então o velho carpinteiro explicou ao neto, que assim como aconteceu com os pregos, algo parecido acontecia com as palavras. Quando você diz algo que machuca alguém você crava um prego no relacionamento, na emoção, na sensibilidade, na alma daquela pessoa.

Quando você pede desculpas você arranca os pregos, mas as marcas, os furos, nem sempre podem ser apagados. A parede jamais será a mesma, não é mais possível ignorar aquelas marcas.

Você tem toda a liberdade de pregar os pregos que desejar, da forma que quiser, mas tenha a consciência de que, mesmo arrancando os pregos, ficarão furos na parede.

Você tem liberdade de dizer o que quiser, mas mesmo que peça desculpas depois e seja perdoado, os furos dos pregos ficarão. A palavra dita jamais retorna e a marca que elas deixam nem sempre podem ser ignoradas ou apagadas.

Por isso, se queres resultados diferentes, então precisas fazer diferente. É melhor ter mais cuidado com as palavras, com a forma de dizer, para quem diz e em quais circunstâncias.

A solução para uma pessoa não adoecer com o aquilo que guarda não está em colocar para fora, jogando o seu lixo na sala do vizinho. Está no tipo de coisa que produz. Por exemplo, o que produz coisas amargas é a amargura. O que produz coisas doces é a doçura. A escolha do que você vai produzir é sua e não dos outros.

Não é sua a tarefa de julgar a sensibilidade dos outros ou exigir que não se ofendam com o que você diz. Também não é verdade que usar palavras amenas é enganar ou mentir. É possível dizer a verdade de diferentes formas e até a mais dura verdade pode ser dita de forma gentil.

A sua forma de dizer, grosseira e rude, não é uma virtude, se fosse não machucaria tanta gente. A sua forma de dizer é o sinal de que algo não está bem no seu interior. Pode ser a expressão da sua amargura, da sua insatisfação, da sua revolta ou, talvez, da sua insegurança.

Depois de ouvir as palavras do seu avô e de passar por esta experiência, Prolixo nunca mais foi o mesmo, mudou completamente a sua maneira de ver as relações, o valor das palavras e de falar com as pessoas.

A sua vida mudou, ele entendeu o grande poder que as palavras tinham na sua vida e na vida dos que o rodeavam.