domingo, 19 de janeiro de 2020

O FARELO DE BOLO, O AVIÃO E O CALABOUÇO



Quanto mais eu aprendo, menos eu sei




O meu pensamento inicial sobre saber e não saber seguia uma lógica que com o tempo mostrou-se ilusória. A lógica era bem simples: se eu leio eu aprendo e, portanto, se eu aprendo eu sei, tenho conhecimento.

E eu aplicava este modelo para quase tudo. Se eu estudo eu aprendo e, portanto, agora sei. Se eu viajo, vou até o lugar e vejo, experimento, portanto eu passo a conhecê-lo.

Só que não...
Não é bem assim.

Com o passar dos anos, com os estudos, com as leituras e viagens fui percebendo que havia algo errado com este modelo, ele não estava funcionando.

Em princípio pensei que eu devia ser tão idiota que era incapaz de aprender, por isso quanto mais eu estudava e lia, mais burro eu me sentia, quanto mais viajava, mais desconhecedor eu me sentia. Eu me sentia cada vez menor ao invés de me sentir maior, eu tinha a sensação de que sabia menos e não mais.

Então lembrei de “O enigma de Kaspar Hauser”.

Um filme alemão antigo, de 1974, dirigido por Werner Herzog. O filme conta a história de um jovem que foi mantido isolado em um calabouço desde que nasceu, sem nunca ter contato com pessoas nem com o mundo. Ele não desenvolveu linguagem e não sabia o que existia além daquele calabouço, não sabia como era o mundo. Seu mundo estava ali, dentro daquelas quatro paredes de pedra.

Portanto, naquelas condições, aquele jovem apenas conhecia o que existia na frente de seus olhos, ele não fazia ideia do que ignorava, não fazia ideia de que existia algo mais. Quando o encontraram e o retiraram dali, levaram-no para uma cidade grande para tentar civilizá-lo e então ele conheceu o mundo. Ou melhor, ele tomou consciência de que existia um vasto mundo a ser conhecido, tornou-se consciente do que ignorava, do que desconhecia.

E assim entendi que eu estava enganado quando eu aprendia ou ia nos lugares e acomodava em mim a convicção de que sabia. Não, eu tomava consciência do que ignorava, do que não sabia e do que havia ainda por ser conhecido, visto, vivido e aprendido.


Quanto mais eu rodava o mundo, menor eu me tornava e tornava-me consciente de que conhecia pouco, porque tomava consciência do tamanhão do mundo.

Quanto mais aprendo, mais sei que não sei nada diante do tamanhão dos mistérios da vida e das ciências.

Quando vejo um avião passando lá no céu ele me parece pequeno e simples, apenas um objeto voando, um brilho prateado no azul. Mas quando vou ao aeroporto e chego perto de um, vejo que ele é enorme e de grande complexidade, que tem uma infinidade de coisas que desconheço, então torno-me consciente muito mais do que ignoro em um avião do que conheço dele.

Eu tinha muita vontade de conhecer o deserto, que me parecia, de longe, ser algo simples, só a monotonia da terra seca e quente. Mas quando eu estive lá tomei consciência do seu tamanho, complexidade, multiplicidade e da imensidão a ser conhecida, aí é que fui saber o que eu ignorava em um deserto.

Só quando passei pelo curso de Letras na Universidade foi que tomei consciência do quanto eu não sabia sobre linguagem, literatura e o mundo da escrita. E quanto mais entro neste território, maior ele fica, menos eu sei, mais eu sei que ignoro.

 Assim, quanto mais conheço mais aumenta a parte que desconheço, pois tomo consciência dela. Quase posso dizer que aprender é emburrecer.
Se o jovem Kaspar Hauser não tivesse saído para o mundo não saberia o tamanho que ele tem e o quanto ignorava dele. Supondo que ao ver o mundo, ao aprender algumas coisas novas, com falar, ele olhasse apenas para o conhecimento adquirido, convencendo-se dele, fixando verdades, então estaria tragicamente se lançando novamente ao calabouço. Mas desta vez ao calabouço da sua própria mente, do seu convencimento, da sua ilusão de conhecimento e da cegueira proposital sobre o que ainda ignora, que é praticamente tudo.



Compreendi que se fecho minha visão sobre o que acho que sei, deixando de fora a consciência de tudo o que ignoro, então estarei reduzindo o mundo ao meu tamanho, ao tamanho do que conheço, o que é bem pouco, bem pequeno e bem simples.   

Se me aproximo do avião sei mais dele do que sabia ao vê-lo passando no céu? Não, sei que ignoro mais dele do que ignorava ao vê-lo passando no céu.

Se saio da minha casa, da minha cidade, para viajar pelo mundo, conheço mais dele? Não, sei que ignoro mais dele do que ignorava antes de percorrê-lo.

Então conhecer e encher-se de respostas? Não, conhecer é encher-se de perguntas.

Então o que acontecia comigo quando eu lia, estudava, viajava e achava que estava me enchendo de conhecimento? Acontecia que eu estava fixando meu olhar, minha atenção, apenas no adquirido, como se o recortasse e isolasse do restante da realidade. A fatia me saciava e eu esquecia que ela saiu de um bolo enorme ainda desconhecido para mim.

E minha postura passava a ser lamentavelmente a de alguém que conhece, e infelizmente que acha que conhece mais que outros. Então eu queria orgulhosamente expor minha sabedoria, dar a minha opinião, pois achava que ela era importante para os outros, mesmo que não soubessem disso nem a tivessem solicitado.


Claro que olhando para aquela minúscula fatia como se fosse o bolo todo, eu realmente era um sábio. Porém olhando para o enorme bolo de onde experimentei um minúsculo farelo, eu era um grande ignorante. E é isso que sou, embora não raro já tenha chamado alguém de burro, pelo menos em pensamento, infelizmente. Mas agora entendo que esta atitude testemunha sobre mim, mostra a minha realidade, não a dele.

Vergonhosamente cheguei a pensar mesmo que eu estava me tornando um sábio, uma pessoa que conhecia a verdade e que talvez fosse mesmo superior a outros. Mas quando aprendo algo, quanto viajo a algum lugar, consigo ver então o quanto não sei, o quanto não conheço, o quanto tenho a aprender, o quanto sou ignorante.

A primeira postura não foi tomada à toa, ela me tornava grande e seguro, fazia eu esquecer da minha pequenez e vulnerabilidade. A segunda postura, ao contrário, torna-me pequeno diante do mundo, da vida e de seus mistérios. Sinto-me até mesmo incapaz e vulnerável, mas me parece mais realista, parece mais a minha cara.

Claro que se eu olhasse para aquele farelo adquirido e ainda o aumentasse um pouco, esquecendo de onde ele saiu, realmente eu era um gigante poderoso que comeu todo o bolo, que o absorveu integralmente. Assim como de longe pareço maior do que um avião, o que não é verdade.  

Quando olho para o farelo que adquiri, em comparação com o bolo todo, não sou nada e tenho tudo para aprender e conhecer. Assim não caio na ilusão desastrosa de me achar sábio, conhecedor, melhor ou maior do que outro alguém. Assim não reduzo o mundo ao meu tamanho, enxergo-me pequeno nele, ignorante dele, com tudo para aprender.



Este é um exercício que faço, um treinamento, nem sempre com sucesso.





sábado, 11 de janeiro de 2020

O PEQUENO PRÍNCIPE (Antoine de Saint-Exupéry)



Ilusões e fantasias de gente grande




O pequeno príncipe, publicado originalmente em abril de 1943, é uma das obras do aviador e escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, um conde, filho de conde, segundo sua biografia, que nasceu em Lion em 1900 e morreu em 1944, quando teve seu avião abatido pelas forças alemãs durante uma das suas missões pela Europa em guerra. Não presenciou, portanto, o grande sucesso da sua obra.

Abre parênteses.

Uma curiosidade: temos no Brasil uma via chamada de Avenida Pequeno Príncipe, que é a principal via de acesso à praia do Campeche, em Florianópolis, Santa Catarina. O nome é uma homenagem da cidade a Antoine de Saint-Exupéry, que usou algumas vezes um campo de pouso da praia do Campeche para suas aterrissagens na Ilha de Santa Catarina no início do século XX.

Fecha parênteses.

Vamos às ilusões e fantasias de gente grande expostas pela sabedoria das crianças.

Talvez você já tenha lido o livro ou de alguma outra forma tenha conhecido a história e esteja pensando que é meio óbvio falar de ilusões e fantasias em O Pequeno Príncipe, pois é a história de um principezinho que morava em um planeta pouco maior que ele e veio para a Terra.

Ilusões e fantasias que envolvem viagem espacial, carneiros dentro de caixas e elefantes dentro de jiboias. Tem um aviador perdido no deserto, longe da civilização, com seu avião estragado, que provavelmente estava delirando por causa das condições adversas extremas, argumentaria a pessoa grande.

Não, não, não! Nada disso, não é esta a ilusão e a fantasia que me chama a atenção neste livro.

Para mim ele expõe outro tipo de ilusão e de fantasia, reais, que não são benéficas e saudáveis como estas que figuram em primeiro plano no enredo desta narrativa de ficção.

Os diálogos entre o aviador e o Pequeno Príncipe, as histórias, as conversas com animais e plantas, as personagens incomuns cheias de simbologias, o ambiente próprio das fábulas, tudo isso é produto da arte e da imaginação. A linguagem é a matéria prima que a imaginação usou para criar esta linda fábula.

Mas a arte pisa em um calo.



A arte pisa no nosso calo, talvez por isso o autor faça o alerta de que o livro não foi escrito para crianças, mas para adultos, ou para as crianças que porventura ainda possam sobreviver nos adultos. Toca na ferida da pessoa grande, importante, séria, ocupada que nos tornamos e provoca reflexões sobre nossa maneira de ver o mundo. Com as limitações próprias de quem perdeu capacidades da infância, por exemplo, a capacidade de enxergar, de ver além do que os olhos são capazes de nos mostrar.

Porque pessoas grandes precisam de tudo explicadinho, perderam a capacidade de imaginar devido a seriedade da vida adulta. Por isso é preciso desenhar jiboias abertas, para que elas vejam o elefante dentro e não confundam com um chapéu.

Há nas pessoas grandes do Pequeno Príncipe a ilusão doentia de controle, de domínio, de supremacia, de que é possível fugir daquilo que cativa sem conflitos. O monarca tem a ilusão de que todo e qualquer homem é seu súdito e que ele poderá controlar a todos o tempo todo, sem rebelião. O vaidoso tem a ilusão de que todos o admiram todo o tempo. O bêbado pensa que pode esquecer a vergonha de ser um bêbado, bebendo. O homem de negócios acha que é sério porque lida com números e possui riquezas, na ilusão de que pode fazer um cheque das estrelas do céu, depositar no banco e assim ser a melhor das pessoas grandes.  O pobre acendedor de lampiões (profissão existente antes de haver luz elétrica nas ruas) fantasia que até o nascer e o pôr do sol se adequarão aos regulamentos. O geógrafo tinha a ilusão de transferir o mundo para os seus livros enormes sem levantar a bunda da escrivaninha e que essa era a mais nobre das atividades.

E desta forma, na terra, um planeta enorme, lindo e rico, as pessoas grandes, tomadas por loucas fantasias e insanas ilusões se amontoam em poucos e pequenos espaços deixando enormes extensões inabitadas e ainda assim vivem solitárias. Aumentam cada vez mais a velocidade, mas não fazem ideia de onde querem ir.

Na terra, o principezinho constatou que os homens não têm imaginação e uns repetem o que os outros dizem. Cultivam milhares de rosas amontoadas em um mesmo jardim e se sentem pobres ao ponto de quererem matar raposas. Tomados de estranhas ilusões de superioridade, de progresso, de controle e posse as pessoas grandes são solitárias vivendo na multidão, vivem na miséria tendo mais do que o necessário, porque não sabem cativar e desconhecem o essencial.

As pessoas grandes, em O Pequeno Príncipe, perderam o contato com a realidade e a habilidade de imaginar, tornaram-se desertos. Levam a sério os oásis ilusórios da cultura humana, visão provocada pelo rigor das condições extremas, pela febre e desidratação em que se colocam.


Enquanto isso o Pequeno Príncipe mantem o equilíbrio entre a sua criança interior e seu adulto dando a importância devida a cada coisa, nem mais nem menos, sem se deixar levar pelas convenções nem pelas ilusões de pessoas grandes.

E o aviador encontra-se entre um e outro, ora ele é tomado pelo adulto ocupado com coisas importantes, como arrumar seu avião nem que seja a marteladas, ora ele se deixa conquistar pela imaginação e pela leveza do seu pequeno príncipe interior.

Ao final, a obra mergulha de repente em uma espiritualidade mágica e se conecta com o seu início, deixando a pessoa grande órfã daquelas explicações minuciosas e detalhistas, dos números e dados de comprovação que tanto necessita, mas não vai ter. Não desta vez.


Bom, agora que já perdi a conta de quantas vezes li este maravilhoso livro (o carrego comigo há anos), quero trocá-lo por outro, seja definitivamente ou para destrocar depois. Se você tem um livro e deseja trocar comigo, deixe seu recado aí embaixo, nos comentários. 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

A CONQUISTA DA FELICIDADE (Bertrand Russell)



Cem anos entre ontem e hoje


A conquista da felicidade é um livro que comprei há muito tempo e não havia lido, ele estava esquecido aqui em casa, até neste início de ano, quando eu procurava algo para ler e dei de cara com ele. 
Então fiquei pensando: 
porque ler, porque não ler, porque ler, porque não ler, acabei lendo.

É uma obra datada dos anos 30 do século XX, em que o filósofo e matemático britânico apresenta suas observações e análises acerca da felicidade e da infelicidade. Ele aborda, de forma simples e clara, em linguagem acessível, diversas áreas da vida humana como trabalho, tédio, excitação, entusiasmo, interesses pessoais e coletivos, sentimento de pecado, preocupação com a opinião dos outros, manias de perseguição, família, carreira, fadiga, inveja, afeição, esforço e resignação entre outros.

Mas o que mais me chamou a atenção neste livro nem foram as análises e observações de Russell acerca de felicidade e da infelicidade, porque entendo, contrariando a palavra de ordem da nossa época, que o que importa mesmo não é ser feliz.

O que me surpreende mesmo é a data do livro, 1930.


O livro foi publicado originalmente em 1930, no Reino Unido, o que significa que as ideias que ele contém foram sendo construídas, pensadas, elaboradas e depois escritas pela mente de um erudito, ao longo dos anos 1920 pelo menos e em ambiente europeu. Russell morreu em 1970, vítima de uma gripe, aos 98 anos. Portanto em 1930 ele tinha 58 anos, foi até aquele momento da sua vida que elaborou e escreveu A Conquista da Felicidade.

Agora, quase que por acaso, o livro cai nas mãos de um brasileiro, nada erudito, 53 anos, quase a mesma idade do autor à época, na entrada dos anos 20, do século XXI, a 100 anos de distância.

E o tema é justamente aquele mais presente na vida das pessoas, o que todos mais perseguem, o que todos mais querem: a felicidade. Tudo o que se faz é na tentativa de ser feliz, cada um à sua maneira. Felicidade é inclusive o que desejamos, pelo menos retoricamente, às pessoas nas datas especiais, aniversários, ano novo...

Mudamos o corpo para sermos felizes, compramos para sermos felizes, estudamos, casamos, nos reproduzimos, trabalhamos e saímos para nos divertir na esperança de sermos felizes. Quem assim não se sente, mantém a esperança de um dia finalmente ser feliz, por obra talvez do acaso ou de algum deus, que seja.

Até me vem à mente a imagem do cachorro que leva uma linguiça amarrada numa vara e presa nele. Já viu isso? Ele anda sempre atrás daquela linguiça na esperança de comê-la, sentindo o cheirinho, sentindo que está tão perto, mas nunca irá alcançá-la, pois não percebe que está presa nele mesmo.

Veja só que curioso o que Russell diz da sua época.


Ele inicia o livro dizendo que se alguém é feliz, deve perceber ao seu redor quantos o são realmente, quantos estão representando que são felizes e quantos são realmente infelizes. Afirma que, se observarmos o comportamento das pessoas, na multidão entregue às horas de trabalho nota-se ansiedade, concentração excessiva, dispepsia, incapacidade para a diversão, desconsideração pelo próximo, indiferença a tudo que não seja a luta cotidiana. Não lhe parece familiar?


Ao longo de todo o livro, enquanto aborda variados aspectos da vida humana, o autor cita situações pessoais e sociais que podem ser causas de infelicidade. E enquanto eu lia até esquecia de vez em quando que ele tinha como referência pelo menos as duas primeiras décadas do século XX e não do século XXI, então eu “atualizava” em minha mente a data do livro para o passado.

Tanto nas questões pessoais como nas sociais, à revelia de toda a “evolução” e da grande diferença que há entre as duas épocas, a vida humana mantém a mesma configuração. Os meios avançaram, a velocidade aumentou, surgiram facilidades e confortos, mas os problemas são os mesmos, foram apenas potencializados. E é claro que temos novos conflitos, próprios da nossa época, que se somam aos que vem de lá, do passado, e aos que são próprios do humano, que parecem eternos, perenes, inabaláveis.

Falando em conflitos humanos perenes e inabaláveis, só abrindo um parêntese, um dia destes, aqui na minha cidade, um irmão matou o outro e a comoção foi geral, todos comentando o horror, o absurdo de um irmão matar o outro. E eu pensei com meus botões, que o fratricídio foi o primeiro assassinado do gênesis judaico/cristão. Parece que Caim abriu os trabalhos e a humanidade se mantém em sua trilha, nada mudou, alguns seguem praticando externamente e outros internamente. Mas o fato é que, de uma forma geral, o homem pouco muda a sua natureza, não importa a época, a tecnologia, a modernidade, os avanços.

A questão da felicidade é colocada por Russell como uma conquista pessoal, individual. Bem no comecinho do livro, a partir da página 13, o autor afirma que já escreveu antes sobre as mudanças que deveriam ser feitas no sistema social (lembre-se, a referência é o início do século XX, no Reino Unido) para favorecer a felicidade. E ele cita algumas das mudanças que sugeriu: descobrir um jeito de evitar as guerras, a exploração econômica e a educação baseada na crueldade e no medo.

Entretanto diz Russel que evitar a guerra é uma necessidade vital para a nossa civilização, mas isso não é possível enquanto os homens forem tão infelizes que “o extermínio mutuo lhes pareça menos terrível do que enfrentar continuamente a luz do dia”. Evitar a perpetuação da pobreza é necessário, mas de que adiantaria todos se tornarem ricos, “se também os ricos são desgraçados?” “A educação na crueldade e no medo é má, mas aqueles que são escravos destas paixões não podem oferecer outro tipo de educação”.

Russell diz então que em A conquista da felicidade resolveu focar na questão individual e pergunta: “Que pode fazer um homem ou uma mulher, aqui e agora, no meio da nossa nostálgica sociedade, para conquistar a felicidade?” Lembrando mais uma vez que esta sociedade, este aqui e agora a que ele se refere, é de 100 anos atrás, mas que surpreendentemente dialoga perfeitamente com nossa época, compartilhando muitas características comuns, feito comadres no chá da tarde, para ser mais britânico.

Seja assassinando irmãos seja amargando a infelicidade, parece que nós, humanos, não temos conseguido evoluir muito nestes aspectos. Mudamos muitas coisas, sim, a violência não é mais a mesma, foi refinada, camuflada, o que pode ser bem pior. Aquela educação na crueldade e no medo a que Russell se refere, por exemplo, agora tem outras embalagens, com cores diferentes, os medos são outros. 


Pode não ser mais o medo de ser espancado pelo professor ou pelo pai, o que não significa que não se use mais a ameaça, a crueldade e o medo na educação. Por exemplo o medo de não corresponder às expectativas, de decepcionar, de não se tornar alguém na vida, de ter que ouvir as lamentações e broncas dos pais, de perder coisas, de perder privilégios, de ser visto como um fracassado, de ser ridicularizado pelos parentes e colegas, de ser rotulado, taxado, carimbado, marcado para sempre.

A crueldade agora vem dos colegas. Se Russell aponta que os mestres eram escravos de paixões que os tornavam cruéis e por isso não podiam oferecer outro tipo de educação, hoje esta crueldade está nos alunos, nos colegas de classe. Ao longo do tempo a crueldade dos mestres, dos pais e das escolas foi transferida para os alunos, como não poderia deixar de ser. A discriminação, a exclusão, a ridicularização, o bullying e até a violência física se faz entre os iguais, o que torna tudo isso bem mais dolorido.

Por isso que quando se lê este Russell de 100 anos atrás temos a sensação de que ele escreveu ontem. O que é bastante triste, ver que não evoluímos na conquista de nossa felicidade. Ao contrário, somos um século mais infelizes, seja como indivíduos seja como sociedade. Talvez tenhamos desenvolvido boas técnicas para camuflar nossa infelicidade, criamos novas máscaras, nos aperfeiçoamos na arte de encenar e nisso realmente evoluímos.

O que Russell não ficou sabendo é que neste início de século somos mais. Mais ansiosos, mais deprimidos, mais medrosos, mais reprimidos, mais solitários, mais individualistas, mais apressados, mais indelicados e mais mentirosos. Se ele visse e comparasse esta época com a que ele viveu, esta sociedade com a sociedade que ele observou, iria ter material para pensar e escrever por mais 100 anos. Mas talvez mudasse o tema e o título fosse: A conquista do humano. Pois parece que primeiro temos que nos tornar humanos, temos que aprender a sermos humanos, para depois pensar em felicidade.

Russell percebeu muito bem, há 100 anos, que não temos possibilidade de construirmos ou pensarmos em um projeto de felicidade coletivamente, como sociedade ou com espécie. Mas ele acreditava na felicidade e achava que individualmente, mediante certos procedimentos, colocando em prática certas técnicas, tomando certos cuidados, sabendo lidar com os próprios fantasmas e proteger-se das nossas humanas mazelas, uma pessoa pode ser feliz.

De minha parte, agora que já li o livro, quero trocar por outro, de preferência um romance que eu não tenha lido e que me interesse. Pode ser uma troca definitiva ou para destrocar depois.
Alguém?

domingo, 5 de janeiro de 2020

EU, FANÁTICO: COMEÇO, MEIO E FIM.



A entrada


Quando eu tinha 22 anos vi um cartaz no caminho para o trabalho convidando para uma palestra. O assunto me interessou, os temas despertaram a minha curiosidade, a palestra seria no auditório de um colégio, de graça. Fui.

Ao final daquela palestra foi feito o convite aos presentes para participarem de um curso, totalmente gratuito e livre, com duração de 6 meses, abordando mais detalhadamente aqueles e outros temas que também despertaram meu interesse. Segui assistindo ao curso.

Tudo fazia muito sentido, aliás, parecia que os palestrantes liam meus pensamentos, conheciam minha vida e falavam diretamente para mim. Era assim que eu ouvia.

Ao final do curso de 6 meses anunciaram que haveria uma segunda fase do curso, com exercícios e treinamentos para pôr em prática a teoria que estava sendo estudada. Pois explicaram que somente teoria não muda a vida de ninguém, para haver transformação era necessário viver o que aprendemos.
Ah! Já ia esquecendo. Logo no início do curso apareceram os livros, muitos livros sobre tudo o que nos estava sendo passado. E eu, que já era um leitor ávido desde a adolescência, é claro, comecei a comprar e a devorar os tais livros.

Foi assim que segui participando da segunda fase do curso, aprofundando-me nos assuntos, querendo saber cada vez mais e também querendo praticar para ver se eu alcançava as maravilhas que eram prometidas nas teorias e que, ao que parecia, os palestrantes já desfrutavam. Pelo menos era essa a minha visão da coisa.

A permanência


A segunda fase durou também 6 meses e depois dela vieram outras fases e outros compromissos e mais participação e outros livros e revelações e ...

Eu era (acho que era, ou ainda sou?) uma pessoa que pensava e sentia
assim: se é para fazer algo mais ou menos, meia boca, se é para não dar tudo de si naquilo em que se crê e quer, então melhor nem se meter, nem começar. Ou é tudo ou é nada, nunca fui muito chegado a meios termos, ao mais ou menos, ao morno. Alguns dizem que é uma característica do signo, sou de escorpião, mas não sei nada disso, só sei que este modo de pensar trouxe problemas para mim. Acho que trouxe coisas boas também.

Enfim, conheci a instituição completamente, fiz tudo o que tinha para ser feito, li tudo o que havia para ser lido, passei a ter contato com os mais altos cargos e comandos do Brasil e do exterior, tornei-me um palestrante daquela instituição, alcancei certo destaque e arrastei muita gente para aquele caminho.

Eu era um tipo de missionário, viajei pelo país fundando escolas, dando palestras, inaugurando cursos como aquele que me seduziu. Passei a viver somente para aquele conhecimento, de doações e ajuda dos outros. Eu sentia que havia somente aquilo de importante na minha vida, que aquilo era a própria vida e não conseguia mais me ver fora daquele modo de vida.

E desta forma sentia que aquele conhecimento era a única verdade existente, acreditava nele e por consequência assumia tudo o que ele trazia. Deste ponto de vista eu passei a lamentar que tanta gente estivesse fora dele e, portanto, indo pelo caminho errado.

Vivi pelo menos uns 6 anos envolvido desta forma, casei-me em virtude desta opção, mudei meu modo de vida, afastei-me de pessoas, morei em várias partes, deixei e neguei empregos em virtude da minha crença, condenei e critiquei pessoas, investi minha vida e meu tempo. Não havia limites para o que eu poderia fazer pela minha crença.

Agora eu era um fanático


Estou contando esta história para explicar como eu experimentei o que é ser um fanático, o que é o fanatismo para mim, como eu o vivi e como ele me prejudicou e a outras pessoas.

Há muitos artigos interessantes na internet sobre fanatismo, fundamentalismo e dogmatismo que é recomendável ler, pois foram escritos por especialistas no assunto, mestres e doutores de instituições renomadas, da área da Teologia, da Filosofia, da Psicologia... Não é neste nível que coloco o assunto aqui, sou um leigo, apenas conto o meu caso, o resto é com vocês.

Passei a não ouvia mais ninguém nem nada diferente daquilo que escolhi como verdade. Somente eu, inspirado pelo conhecimento que adquiri e pelo que estava escrito, tinha razão, ainda que eu não discutisse.  Aliás, não se discute quando se tem certeza de estar certo. Mas eu não estava.

Somente aquele conhecimento era correto e tudo o que estivesse fora dele estava errado, ainda que eu não dissesse isto, era assim que eu entendia em meu íntimo.  

Passei a ser capaz de me afastar de qualquer um por causa daquela minha opção, de passar por qualquer situação, de suportar tudo e de fazer qualquer mudança para cumprir minha missão. Nada mais me despertava interesse como aquilo e qualquer palavra contra minha razão era imediatamente rechaçada. Mesmo que apenas mentalmente.

Sei que, a maneira de outras patologias, o fanático jamais aceitará que é um fanático. Não adiantava ninguém me dizer, imediatamente eu recusava e tinha certeza de que eu não era um fanático. Existiam fanáticos, mas em outras seitas, religiões e organizações, não na minha que era a verdadeira, que tinha a verdade universal.

De acordo com a minha experiência, é assim que pensa um fanático. Era assim que eu pensava. Relevando às vezes porque as pobres pessoas não conheciam a verdade que eu conhecia.

No meu fanatismo não havia lugar para opiniões diferentes, não havia espaço para outras verdades, elas não existiam, somente aquela das escrituras que eu seguia. Mesmo que eu olhasse para as pessoas com condescendência, compreensivo, aceitando a ignorância delas, mantinha todas fora do meu mundo correto.

A não ser, é claro, que elas aceitassem incondicionalmente a verdade que eu pregava, aí eu as recebia, ajudava e conduzia.

Vivi assim por anos. Vivi momentos agradáveis e desagradáveis. Posso dizer que perdi tempo da minha vida, encarcerado no fanatismo, que me limitou, manteve-me preso, obtuso, intolerante, preconceituoso, equivocado e chato, muito chato.

Tomei decisões erradas, fiz coisas que me prejudicaram, arrumei encrencas que poderiam ter sido evitadas.

Mas o pior mesmo é que prejudiquei pessoas, muitas pessoas.

Neste fanatismo convenci muita gente das verdades que eu pregava, fanatizei pessoas, alterei rotas e vidas, provoquei mudanças nem sempre para melhor, mexi com famílias, com configurações sociais, com a vida das pessoas.

A libertação


Não sei dizer exatamente o que eu fiz ou o que aconteceu que fez com que eu saísse daquela prisão, daquele cárcere do fanatismo. Sei que passei muito trabalho, muitas privações, sofri bastante. Sei que não sou uma pessoa que se conforma por muito tempo com uma situação que não está agradável, se eu não estiver visualizando um objetivo maior.

Lembro-me que um dos estopins da minha libertação, talvez a semente, foi ver o fanatismo naqueles que me seguiam. Certo dia um homem, um profissional, pai de família, chegou para mim e perguntou se ele podia fazer uma festinha de aniversário para comemorar o primeiro aninho do seu filho mais novo.

Neste momento eu me dei conta de que antes de eu chegar naquela cidade e começar as palestras e cursos, aquele homem sabia com segurança o que queria, o que podia, o que devia fazer, de acordo com a sua própria consciência.

Se eu tivesse dito que ele não podia fazer a festinha ele teria enfrentado toda a sua família e teria me obedecido e aquilo me chocou demais, foi como um soco na minha cara.

Mais tarde, eu estava em outra cidade bem longe da minha terra e trabalhei por um tempo com crianças portadoras de necessidades especiais. Nesta época meu filho havia nascido, estava com apenas 2 meses.

Então um certo dia eu estava andando por uma rua daquela cidade e simplesmente uma decisão se instalou em minha mente, como um facho de luz. “Vou voltar para a minha terra e vou me tornar um professor”. E foi o que eu fiz.

Claro que não foi tão fácil assim, as lutas foram muitas, mas muitas, mesmo. Nem meu casamento resistiu às mudanças que comecei a realizar. Mas já mudei minha vida muitas vezes para muitos lados diferentes, de variadas formas, esta foi só mais uma. Nunca tive medo de mudanças, aliás, gosto delas.


Com as minhas mudanças aquela instituição fez uma assembleia e decidiram por me expulsar formalmente. O que significava que seus membros não poderia mais ter contato comigo, inclusive minha esposa e meu patrão na época. Os dois me demitiram.

Algum tempo depois a instituição se desfez (não por minha causa, é claro). Eu saí praticamente ileso e até me arrisco a dizer que aprendi algumas coisas úteis. Mas nem todos tiveram esta sorte, alguns não conseguiram se libertar, teve quem perdeu o juízo, quem abandonou tudo, mas tudo mesmo, mulher, filhos, riqueza, empresas, e virou andarilho.

Depois de muito esforço, de muitas lutas e cicatrizes, entrei para uma Universidade pública, aos 29 anos, e tornei-me professor.

Nunca mais me senti bem em influenciar pessoas deliberadamente com fiz naquela época. Entendi que sou apenas mais um cego e que não posso querer guiar ninguém. Quando tenho certezas, prefiro questioná-las e, se for o caso, tomá-las somente para mim. Cada um que encontre as suas.

Aprendi a duras penas que um cego que acha que vê e quer guiar pessoas é um grande perigo, leva todos para o abismo. Não guio homens nem me deixo guiar por eles, são apenas homens como eu e como eu têm visão e entendimento limitados. Podem estar cegos e enganados, mesmo que tenham certeza absoluta. Sempre há esta possibilidade.

Se depender de mim, cada um que faça o seu caminho, com toda a liberdade. Que vivam como quiser.

O fanatismo, seja religioso, político ou relativo a qualquer outra área é uma doença que pode ser curada. É desastrosa, nefasta e muito perigosa.

Eu, da minha parte, quero apenas distância, não pretendo cair nesta armadilha de novo.