Na era da falta de tempo, terceiriza-se até as decisões e o pensar.
Se não dá tempo, então paga
alguém pra fazer, não é assim?
Mas tem gente terceirizando
tudo e a principal desculpa é a falta de tempo.
Que é a desculpa mais usada e
também a mais esfarrapada de todas.
Existe falta de interesse, falta
de organização, de vontade, de foco, de prioridade, mas não falta de tempo.
O tempo continua o mesmo, do
mesmo jeitinho e com os mesmos mistérios. O homem é que quer colocar dentro de
um certo espaço de tempo mais do que cabe nele.
É insanidade querer colocar um
trem com dezenas de vagões na sala de casa sem estragar nada. Algo certamente
vai dar errado. Mas ainda assim esta atitude é uma decisão pessoal, não é algo
imposto a alguém nem impossível de ser alterado.
E com esta graciosa falácia da
falta de tempo se tem terceirizado tudo: a limpeza, a manutenção, a cozinha, a
arrumação, a educação e a criação dos filhos...
Terceiriza-se a saúde mental e
emocional, a alegria e o ânimo, porque não se tem mais tempo para cuidar destas
coisas. Além disso, existem pessoas e substâncias destinadas a esta tarefa.
Terceiriza-se a saúde espiritual
e física, porque também não se tem tempo para isso e existem pessoas
especializadas nestas áreas. Há quem ensine a comer, a se mexer e até a
respirar da forma “correta” e há aqueles que cuidam da espiritualidade dos
outros.
Terceirizam-se as decisões, o
planejamento da vida, da carreira, do matrimônio e até os pensamentos, porque não
se tem mais tempo de pensar e já há quem pense pelos outros, quem reflita sobre
o casamento dos outros, quem estabeleça as prioridades dos outros, quem use a
mente pelos outros.
Então terceiriza-se a própria
vida, porque não se tem tempo de viver nem de pesar a própria vida.
Maravilhosa é a falta de tempo,
que serve de máscara ao medo, à incompetência, à preguiça, ao desinteresse, à
desorganização.
Não se fez a visita, não se procurou
a pessoa, não se fez o que prometeu por pura falta de tempo.
Terceirizou-se a sinceridade,
a hombridade, o caráter e a verdade para a falta de tempo.
O sono pode ser terceirizado,
deixado a cargo do Diazepan; a atenção e concentração podem ficar a cargo da Ritalina;
a calma, o equilíbrio e a alegria, dos pais e dos filhos, quem sabe se entrega
ao Prozac ou a outra substância qualquer. Para cada área que se deixa de cuidar
surge um substituto a quem se pode terceirizar.
Algumas destas lacunas que foram
criadas deram lugar a novas profissões para preenchê-las.
Quer muito, mas não tem tempo.
Embora encontre tempo para todo o resto e o dia continua tendo 24 horas e a
semana 7 dias. Exatamente como era há 50 anos.
O que mudou, então?
Talvez o homem esteja se tornando
mercadoria, coisa, máquina, aparelho, eletrodoméstico, visto que está tendo que
terceirizar as tarefas humanas.
Por outro lado, as tarefas
humanas são cada vez mais exercidas por máquinas ou por profissionais, e a
humanidade se robotiza.
Parece que as pessoas estão perdendo a capacidade de exercerem as mais elementares atribuições humanas e de
cuidarem da própria vida e da família.
Nem mesmo a decisão de comprar
é mais exercida com humanidade e liberdade, é implantada, é enxertada.
Até as necessidades são
terceirizadas, são criadas por outros ou estabelecidas por algoritmos. Aparece
no meu feed, por exemplo, o que o algoritmo decide que é importante para mim,
seja publicidade ou não.
Além dos softwares que leem,
analisam e dirigem as escolhas das pessoas, além dos químicos que fazem aquilo
que não se tem tempo de desenvolver, paga-se o coach pessoal, o coach
profissional, o coach de relacionamentos, o mentor, o analista, o personal trainer,
o personal stylist, o personal organizer, o marido de aluguel, o personal
tourist, o pastor, o guia espiritual, a babá...
Se antes as pessoas conversavam,
se aconselhavam e ouviam o pai, o avô, os amigos, agora, não tendo tempo para
isso, elas pagam alguém que faça este papel. E então acham tempo e confiam, porque estão pagando um profissional.
Se tudo o que cabe ao ser
humano, tudo o que faz parte da vida humana precisa ser terceirizado, entregue
para alguém, para alguma máquina ou para alguma substância fazer, então o que
sobra?
Para que servirá o homem?
Para produzir e consumir, apenas?
A superespecialização pode ter
levado o humano a grande limitação, mecanizando-o e fazendo-o perder iniciativa,
atitude, independência, capacidade, habilidade, naturalidade?
Geralmente, a desculpa é a
falta de tempo por se ter que cuidar da carreira, da fama, do dinheiro, dos
compromissos, dos afazeres e não sobra
tempo para cuidar do resto.
O principal da vida ficou
relegado a resto e sobra e foi entregue aos cuidados de
outras pessoas, entidades, substâncias. E o que era para ser resto e sobra tornou-se o principal.
Este não é um discurso moralista,
maniqueísta, que quer estabelecer o que é certo e errado ou o que as pessoas precisam
fazer para serem felizes. Nada disso, não tenho interesse em influenciar vidas
nem em dizer para as pessoas como elas devem viver.
O que exponho aqui é apenas
reflexão pessoal, se servir a alguém, se ajudar, muito bem, se não servir, tá
bem também. Serve para mim.
Porque, ao escrever, faço algo
que gosto muito de fazer, que me dá prazer, e ainda paro para pesar e refletir
sobre a minha vida. Depois compartilho o resultado.
Para escrever sobre não ter tempo
e terceirizar tarefas que são minhas, da minha vida, tive que arrumar tempo
para isto, tive que me organizar, elencar prioridades, e isso só me faz bem.
Sei que as pessoas dormem
tarde, acordam com despertador, cumprem horários puxados no trabalho, na
faculdade e em casa e que precisam disso para sobreviver.
Mas também sei que muitas
pessoas estão ficando doentes justamente por causa deste estilo de vida, entre
outros fatores.
Eu também já vivi assim e conheço
um exército de gente que vivia assim e descobriu novos caminhos, buscou
alternativas, algumas porque já estavam doentes, outras porque queriam viver e
não somente existir.
Se o estilo de vida não está
fazendo bem, se o essencial da vida está sendo deixado de lado, então é preciso
buscar alternativas.
E elas existem.