Estranha é a surpresa diante
do óbvio e a naturalização do absurdo.
Não é um ato de rebeldia ou de
resistência chamar fascista de fascista, apenas constatação do óbvio.
Diante de cada ação fascista, atualmente,
surge, quase que de repente, uma surpresa e um alarido, um cacarejar sem
sentido. Mas armas são feitas para matar, a água molha, o fogo queima, bombas
são feitas para explodir, a eletricidade dá choque e fascista faz coisas de
fascista. As coisas são assim mesmo.
Surpresa e nota de repúdio
porque a elite (eu disse: ELITE) não aceita a inclusão e ascensão social dos
pobres e derruba governos com golpe? Mas desde quando a luta de classe virou
uma novidade? Desde quando a botina da elite (eu disse: ELITE) deixou de pisar
em pobre e preto? Que novidade é essa agora?
Surpresa e alarde com decisões
injustas do judiciário? Em que tipo de
fantasia (fora da mitologia) a justiça é cega, isenta e igual diante de todos?
Quem, em sã consciência, se
surpreende com o capital dizimando as florestas e os povos originários, poluindo
todas as águas, sugando o sangue do povo, extraindo a riqueza da terra com os
ossos dos mortos nas barragens, envenenando os alimentos e o ar por dinheiro e
produção, vendendo a pátria?
Quem, em sã consciência, acha
que isso vai parar com condescendência, com coraçõezinhos, com pensamento
positivo, com manifestações de opinião nas redes sociais, com orações, com
conchavos políticos, com voto, com amorzinho inclusivo e respeito ao capital e
à propriedade, com concessões, com coligações, com negociações?
Qual é a droga que nosso povo
tem usado para achar que memes, postagens constatando o óbvio, notinhas de
repúdio, grupinhos virtuais, votinhos na urna e esperança no Estado mudarão as
relações de poder injustas concretadas através dos séculos?
Para vencer o aço dos canhões
e o concreto das divisões de classe é preciso muito mais do que meia dúzia de
likes.
Qual é a surpresa em se ver pessoas
religiosas corruptas, destilando ódio, preconceito, matando e assassinando,
explorando pessoas, apoiando o fascismo, traficando drogas, embaladas pela doce
hipocrisia e pela melosa demagogia? Só para quem não conhece ou decidiu
esquecer a história. Amém, irmão!?
Quando foi que a rebeldia
virou este regurgitar, este ruminar, este vomitar e voltar a comer?
Quem esticou a infância até os
40 e suprimiu a força, o tesão e a rebeldia do adolescente e do jovem?
Quem apagou os sonhos, os
anseios de liberdade e a ousadia dos estudantes?
Em que buraco enterraram o discernimento
e a coragem do pai trabalhador e cidadão?
Qual foi a chave que desligou nossa
autonomia de pensamento e nos fez babar diante de qualquer porcaria que brilhe
ou que tenha o nome de “oferta”?
Quem é o dono do muro que
separa os explorados em grupos rivais?
Que merda fizeram com nossa
cabeça, que somos capazes de brigar por migalhas, migalhas de razão, de tempo,
de dinheiro, de opinião, de lixo. Como pombos ou galinhas, brigamos até pelas
migalhas de mentiras e ilusões que nos jogam no chão das praças e terreiros digitais.
Seguiremos dormentes e
autômatos, referendando essa emergente distopia, fartos de ilusão, carentes de
autêntica e ativa rebeldia.
Quando estivermos certos da
inclusão, sequer veremos ao longe a capital, confinados em distritos, separados
por detritos, chafurdando na própria miséria, boiando inertes na ilusória
razão.
Cada um, uma moeda, um número
de controle, uma bateria, um doador de tempo, uma fonte de sangue e vida para a
grande elite da capital, do capital.
Há quem não faça mesmo ideia
de como o mundo funciona, onde é a casa do poder, onde mora o controle, onde
vive a abundância, por onde andam as intenções de quem comanda.
E se o livre arbítrio legitima
a escolha de uns pela ignorância ou pela ilusão, em benefício próprio, muito
mais a escolha de outros por acordá-los, ou combatê-los, do modo que for, para
benefício de muitos, e sempre, primeiro, dos mais fracos.
Por melhor que possa parecer uma
vida, por mais digna que possa soar, independente da ilusão a que se agarre ou
do deus a que se apegue, se não se posiciona contra o sistema, a favor dos mais
fracos, é nada mais que um lamentável despropósito.