sábado, 16 de novembro de 2019

O DESPERTAR DO CORINGA


 

Estranha é a surpresa diante do óbvio e a naturalização do absurdo.

Não é um ato de rebeldia ou de resistência chamar fascista de fascista, apenas constatação do óbvio.

Diante de cada ação fascista, atualmente, surge, quase que de repente, uma surpresa e um alarido, um cacarejar sem sentido. Mas armas são feitas para matar, a água molha, o fogo queima, bombas são feitas para explodir, a eletricidade dá choque e fascista faz coisas de fascista. As coisas são assim mesmo.


Surpresa e nota de repúdio porque a elite (eu disse: ELITE) não aceita a inclusão e ascensão social dos pobres e derruba governos com golpe? Mas desde quando a luta de classe virou uma novidade? Desde quando a botina da elite (eu disse: ELITE) deixou de pisar em pobre e preto? Que novidade é essa agora?

Surpresa e alarde com decisões injustas do judiciário?  Em que tipo de fantasia (fora da mitologia) a justiça é cega, isenta e igual diante de todos?

Quem, em sã consciência, se surpreende com o capital dizimando as florestas e os povos originários, poluindo todas as águas, sugando o sangue do povo, extraindo a riqueza da terra com os ossos dos mortos nas barragens, envenenando os alimentos e o ar por dinheiro e produção, vendendo a pátria?

Quem, em sã consciência, acha que isso vai parar com condescendência, com coraçõezinhos, com pensamento positivo, com manifestações de opinião nas redes sociais, com orações, com conchavos políticos, com voto, com amorzinho inclusivo e respeito ao capital e à propriedade, com concessões, com coligações, com negociações?  

Qual é a droga que nosso povo tem usado para achar que memes, postagens constatando o óbvio, notinhas de repúdio, grupinhos virtuais, votinhos na urna e esperança no Estado mudarão as relações de poder injustas concretadas através dos séculos?

Para vencer o aço dos canhões e o concreto das divisões de classe é preciso muito mais do que meia dúzia de likes.

Qual é a surpresa em se ver pessoas religiosas corruptas, destilando ódio, preconceito, matando e assassinando, explorando pessoas, apoiando o fascismo, traficando drogas, embaladas pela doce hipocrisia e pela melosa demagogia? Só para quem não conhece ou decidiu esquecer a história. Amém, irmão!?

Quando foi que a rebeldia virou este regurgitar, este ruminar, este vomitar e voltar a comer?

Quem esticou a infância até os 40 e suprimiu a força, o tesão e a rebeldia do adolescente e do jovem?

Quem apagou os sonhos, os anseios de liberdade e a ousadia dos estudantes?

Em que buraco enterraram o discernimento e a coragem do pai trabalhador e cidadão?

Qual foi a chave que desligou nossa autonomia de pensamento e nos fez babar diante de qualquer porcaria que brilhe ou que tenha o nome de “oferta”?

Quem é o dono do muro que separa os explorados em grupos rivais?
Que merda fizeram com nossa cabeça, que somos capazes de brigar por migalhas, migalhas de razão, de tempo, de dinheiro, de opinião, de lixo. Como pombos ou galinhas, brigamos até pelas migalhas de mentiras e ilusões que nos jogam no chão das praças e terreiros digitais.

Seguiremos dormentes e autômatos, referendando essa emergente distopia, fartos de ilusão, carentes de autêntica e ativa rebeldia.

Quando estivermos certos da inclusão, sequer veremos ao longe a capital, confinados em distritos, separados por detritos, chafurdando na própria miséria, boiando inertes na ilusória razão.


Cada um, uma moeda, um número de controle, uma bateria, um doador de tempo, uma fonte de sangue e vida para a grande elite da capital, do capital.

Há quem não faça mesmo ideia de como o mundo funciona, onde é a casa do poder, onde mora o controle, onde vive a abundância, por onde andam as intenções de quem comanda.

E se o livre arbítrio legitima a escolha de uns pela ignorância ou pela ilusão, em benefício próprio, muito mais a escolha de outros por acordá-los, ou combatê-los, do modo que for, para benefício de muitos, e sempre, primeiro, dos mais fracos.

Por melhor que possa parecer uma vida, por mais digna que possa soar, independente da ilusão a que se agarre ou do deus a que se apegue, se não se posiciona contra o sistema, a favor dos mais fracos, é nada mais que um lamentável despropósito.

domingo, 10 de novembro de 2019

UM URSO NA JAULA DE ISOPOR





Uma história para pensar


Há poucos dias eu vi uma reportagem na TV que mostrava um urso pardo vivendo em uma área espaçosa em um zoológico. Embora a área fosse cercada, era arborizada, grande, com troncos e obstáculos, pequenos morros e inclusive um lago.  

Mas o pobre urso não aproveitava toda aquela área, ele só usava sempre o mesmo espaço, de 5 a 10 metros, e ficava caminhando de um lado para o outro sem parar, com aparência de demente, triste, deprimido. A imagem era de cortar o coração.

A explicação para isso é que ele viveu muito tempo em uma jaula e se condicionou a andar de um lado para o outro, de uma parede a outra, em frente a grade.

E isso me fez pensar naquela história da águia que vivia como galinha.

No elefante que fica amarrado a uma estaca que ele pode arrancar com facilidade.

Na boiada que aceita os limites de uma cerca que ela pode estourar facilmente.

No cavalo que aceita o comando de uma rédea que na verdade não tem nenhum poder sobre ele.

E pensei nas pessoas que vivem presas por limites imaginários, porque desconhecem a força que têm e porque adotaram crenças que limitam a vida e aprisionam a alma.

Pensei nos 99% da população mundial, controlada e explorada por aquele 1% que cria as cercas, amarra os laços, puxa as rédeas e estala o chicote do medo.

Ursos e homens, para se libertarem, só precisam acreditar na força que têm, se desfazer das crenças limitantes, pensar fora da jaula.

Entender como os condicionamentos funcionam é um bom começo, que pode até não levar à mudança do mundo, mas leva à mudança do seu mundo.

E a comparação do homem com animais não é ofensiva, pois pertencemos ao reino animal e como temos muitas diferenças também temos muitas semelhanças.

Além disso, usar a natureza para aprender e melhorar não é ofensivo.

Um indivíduo não molda a cultura, mas a cultura molda os indivíduos.


Parece natural de você a forma como você vive, né?

Mas não é.

É só resultado da cultura em que você está inserido.

Não me refiro à cultura como manifestação cultural: teatro, literatura, música, cinema, pintura...

Refiro-me à cultura como o conjunto de hábitos, procedimentos, procederes, costumes, que moldam o modo como uma pessoa vive, como pensa, como vê e entende o mundo e a si mesma.

Há um número enorme de estudos acadêmicos, teorias, pesquisas científicas, ensaios de pensadores sobre a cultura. Desde que o homem é homem ele pensa sobre seu agir, sobre suas reações, como vive, como pensa, como se relaciona, como é sua sociedade e como se tornou quem é.

Praticamente tudo em uma pessoa, desde o jeito de andar, o modo como se alimenta, a maneira como usa o banheiro até a leitura que faz do mundo e como se vê é determinado pela cultura.

E cultura não é algo físico, que se possa pegar, é virtual, transmitida do meio para o indivíduo, passada de geração em geração, do social para o individual.
Para melhor entender, eu costumo comparar a cultura com um software, um programa que se instala em nós e nos faz ser quem somos. Sei que esta maneira de entender e explicar a cultura não agrada a todos, mas é a minha maneira.

Desta forma, quase nada do que eu sou é autêntico, no sentido de ser original, não criei quase nada em meu modo de ser, em minha identidade como sujeito no mundo, tudo foi e é determinado pela cultura, cada hábito, como olho para o mundo e para as pessoas, como vejo, como entendo. Obedeço a um programa.

Portanto, eu, sozinho, ou qualquer pessoa, por mais que faça, não pode mudar a cultura. Ela se forma e se modifica pelo agir das massas, dos povos, por um processo que se dá ao longo de anos, desencadeado por forças gigantescas.

Por exemplo: uma vez, há muitos anos, era cultural em algumas regiões do Brasil as crianças pedirem a benção para o pai e para a mãe antes de irem dormir. Hoje não é mais.

Por mais que uma única pessoa deixasse de fazer isso antigamente ela não mudaria a cultura de uma nação inteira sozinha, outros fatores influenciaram nesta mudança, que foi acontecendo devagar, como um processo, ao longo de muitos anos.

Os filhos faziam isto e os pais exigiam que fizessem enquanto o software estava rodando, à medida que o programa foi sendo modificado as pessoas lentamente foram mudando seus hábitos.

Em alguns povos, as pessoas comem pegando o alimento do prato com as mãos e levando-os diretamente à boca, sem que isso pareça estranho, pelo contrário, é visto como algo natural. Já para nós, aqui no Brasil, e para outros povos do mundo, o natural é usar talheres, comer com as mãos parece estranho.

Nem um nem outro é natural, os dois modos de comer são determinados pela cultura, não faz parte de uma decisão pessoal e independente dos indivíduos destes povos.

O homem tem facilidade de naturalizar as coisas, mesmo aquelas que no início pareçam muito estranhas e até inadmissíveis. O homem das cavernas não usava talheres, mas eu e você hoje achamos natural usá-los.

Em uma certa nação, pedir sal em um restaurante ou lanchonete é uma ofensa grave, uma grosseria. Mas parece natural para eles se sentirem ofendidos se alguém faz isso. O fato gera um sentimento, mas não há nada de natural nisso, é determinado pela cultura.

Natural é respirar, em qualquer povo e em qualquer lugar da terra.

Natural é sentir fome, cede, tesão.

Natural deveria ser o instinto de autopreservação e de preservação da espécie, do ouro.

Natural deveria ser a desobediência às rédeas, às cercas, às correntes.

Mas como o simples ato natural de pegar o alimento com a mão e comer tornou-se um absurdo, porque um dia alguém resolveu fabricar e vender talheres, pensar e viver fora da caixa também se tornou inaceitável, um absurdo e um ato de violência. Isso é repressão.

Neste sentido, a liberdade se dá em níveis diferentes, desde uma postura mais radical e extrema frente à cultura dominante e aos diferentes tipos de limitações e aprisionamentos, até uma vida apenas mais consciente de tais condicionamentos, com um pouco mais de independência.

Fora isso há a total ignorância, a ingenuidade, ou aquele positivismo crente de que as jaulas são para a proteção, as rédeas são para dar a direção necessária e as amarras são naturais, inevitáveis e benéficas.

A partir do momento em que se passa a saber, tudo é uma questão de escolha.


domingo, 3 de novembro de 2019

VENDAVAL NO JARDIM


Checklist de validação


Um jovem estava fazendo uma espécie de matrícula, de cadastro em uma instituição e a funcionária pedia informações sobre ele e digitava.

Nome? Identidade? CPF? Religião?

Não tenho?

Não tem? Mas como assim, não tem religião?

Não tenho religião.

Então boto aqui: cristão?

Não, não bota nada.

Mas foi batizado em qual religião?

Não fui.

Não foi batizado?

Não.

Imagine que esta conversa continuasse neste ritmo e viessem outras respostas negativas para as perguntas “lógicas” da funcionária.

Vacinas?

Não tenho.

Nunca foi vacinado?

Não.

Histórico escolar?

Não tenho, nunca estudei em escola, fui educado em casa e à distância.
Por mais inteligente que este jovem fosse, por mais educado, capacitado e gentil, ele não cumpriu os protocolos sociais, seria um estranho diante dos olhares tradicionais.

A ilusão de autonomia



Parece lógico que desde que nascemos haja um caminho a seguir.

Quando chegamos aqui já existia um esquema a ser seguido e obedecido, que foi traçado por aqueles que chagaram antes de nós.

E parece mesmo que tudo é cumprindo naturalmente.

Somos criado e educados por adultos, que depois nos enfiam em uma escola para sermos preparados para seguir o roteiro. 

E toda a organização social e a mentalidade da maioria das pessoas estão moldadas para cumprir o papel na peça da sociedade humana.

Quando alguém pensa que decidiu fazer faculdade, ter uma profissão, buscar um emprego, casar-se e constituir família, não decidiu, apenas cumpriu o programa.

Este tipo de tomada de decisão não é livre e independente, é modelada. E não há nenhum mal nisso, é claro.

Se a pessoa se sente sinceramente realizada assim, se vive satisfeita, pois que assim seja.

Mas aquele que decidir não cumprir o papel pré-determinado e se aventurar a escrever a própria história, fora dos padrões, será criticado. Não por todos, só pela maioria, principalmente pelos mais próximos.

Há pessoas que sentem que algo está errado, se sentem deslocadas, não pertencendo a este mundo, não aceitas, desencaixadas, um estranho ou uma estranha no ninho. Obviamente o modelo não satisfaz estas pessoas, não preenche os anseios da alma, como se não fossem feitas para encenar a mesma peça social.

Também não há nenhum mal nisso. A não ser que estas pessoas insistam em participar do teatro social comum, tradicional. Neste caso poderá haver problema. Algumas não suportam, têm dificuldade para definir sua identidade e adoecem.

Uma linda rosa na caixa de cristal

Conheço os dois tipos de pessoas. Os que adoram cumprir o protocolo e viver o papel que lhe foi colocado e os que não sabem lidar com isso, não é da sua natureza viver estes papeis e cumprir com os modelos.

Nenhum nem outro deve ser condenado ou deve se sentir culpado.

Você deve saber o que eu estou querendo dizer, deve conhecer ou até já se sentiu assim, como se não pertencesse a este mundo. Tentar de encaixar é doloroso, causa desajustes, machuca, fere quem você realmente é.

Algumas pessoas preferem se proteger do vento para manter o penteado intacto.

Outras preferem a bagunça que o vento faz nos cabelos.

Algumas preferem um jardim organizado, separado, classificado e limpo.

Outros preferem um jardim misturado, ao sabor da natureza, feito vento no cabelo.

Conheci pessoas que sofreram por tentarem se em-caixa-r (encaixar) onde não cabiam.  

Tente coloca uma linda rosa dentro de um dedal e verás o estrago que farás com ela.

Eu vi isso em alunos, em crianças com potencial enorme em algumas áreas, inteligentíssimas em alguns aspectos, mas sofrendo muito, porque os adultos, as instituições, pais, professores, psicólogos e psiquiatras trabalhavam juntos para que se encaixassem em moldes, modelos e protocolos.

Não há escrúpulos em se usar remédios (drogas), ameaças, corrupção e coerção para fazer uma inocente e rica criança, ou até um jovem, se 
em-caixa-r (encaixar),

Preferem matar sonhos, habilidades, sensibilidades e inteligências para chamá-la de “normal” e vê-la cumprindo os ritos e programas de uma sociedade doente.

Neste caso, é preferível o vendaval bagunçando todo o jardim do que as flores morrendo sufocadas nos cristais da sala.  

Felizmente, tenho visto muitas pessoas vivendo fora das caixas, negando papéis pré-determinados de tradições castradoras e sufocantes que cheiram a mofo.

Seja índigo, arco-íris, milenium, Y ou o tiozinho que aprendeu e mudou, não importa o rótulo, existe um grupo de pessoas vivendo sonhos fora da caixa, escrevendo a sua própria história, determinando seu modo de vida, fazendo as próprias escolhas livres das convenções.

E fazem tudo muito bem planejado e com muita responsabilidade, respeitando todo modo de vida.

Se você se sente assim, desajustado, não pertencendo a este mundo, não se culpe, não se machuque, alegre-se, não force a barra para seguir a manada.

Não tenha medo de desagradar, porque mesmo fazendo tudo o que te mandarem você ainda irá desagradar e será criticado.

Então deixa o vento bater. Liberte-se.