sábado, 28 de dezembro de 2019

CONSELHOS DE UM DEFUNTO



A você, que ainda respira.


Pois não se engane, isso vai parar um dia. Não se sabe em qual dos dias acontecerá o último alento, só se sabe que acontecerá.

Foi assim comigo e é assim com todo mundo, disso ninguém escapa.

Você pode não ter certeza de nada, nem de Deus nem do Diabo, nem do céu nem do inferno, mas que vai parar de respirar, a isso vai. Disso não duvide nunca e não se esqueça nem por um instante.

Este foi meu infortúnio, esqueci-me de que morreria e vivi como se a vida fosse para sempre. Não é. A morte veio. Traiçoeira, a danada, pegou-me de surpresa e eu nem tinha vivido direito ainda. Deixava pra depois.

Se você nunca recebeu conselhos de um defunto, então preste muita atenção e aproveite bem estes que lhe dou, se quiser ter uma boa vida, ou uma boa morte.

Caro vivente, asseguro-te que terminei a vida como um rotundo fracasso. O mais completo e absoluto fracasso em todos os sentidos. O que significa dizer que meu tempo aqui foi um gigantesco desperdício.

E vou explicar porque encerrei minha passagem pela Terra com a sensação de mediocridade, de ter fracassado como pai, marido, filho, amigo, irmão, profissional, enfim, como ser humano.

No final, percebi que passei por este mundo e estava indo embora sem deixar nada, mas nada mesmo! Nenhuma marquinha que se aproveitasse, nada de realmente importante, que valesse a pena.

Caro vivente, pode acreditar no que lhe digo, no momento de fechar a conta da existência, aquilo que pensei que fosse fazer parte da operação, que fosse contribuir para um resultado positivo, não teve a menor importância. Zero à esquerda.

Os filhos que vieram através de mim não contaram para evitar minha sensação de fracasso. Desculpe-me a franqueza de defunto, mas, ao que me consta, se reproduzir até os ratos e as baratas se reproduzem. E há muitos seres peçonhentos que cuidam melhor das suas crias do que nós, “humanos”.
Todo tipo de homem e mulher se reproduz, dos mais vis aos mais nobres e em nenhum grande legado você verá filhos. O vil permanece vil e o nobre permanece nobre, pelo que é.

Não se vê no legado dos grandes homens e das grandes mulheres da história da humanidade filhos e filhas. Você sabe da teoria da relatividade, mas não dos filhos de Albert Einstein. Você conhece a psicanálise, mas não os filhos de Freud. Você sabe das façanhas de Darwin, mas não dos seus filhos. Amélia Earhart é conhecida porque voou, não porque se reproduziu. Marie Curie é conhecida pela proeza de ganhar dois prêmios Nobel e não dois filhos. Nenhum grande nome é lembrado pelos filhos que teve ou que deixou de ter. Portanto, filhos não entram nesta conta e você saberá disso na hora derradeira. Aproveita que estou te contando antes.

Está orgulhoso ou orgulhosa porque conseguiu fazer uma faculdade. OK, muito bem, parabéns. Mas isso também não entra na conta, você sabe a grade quantidade de idiotas com diploma que existe. O valor do que se faz não depende de diplomas universitários nem dos títulos acadêmicos que se possa ter conquistado. Naquele último momento, no grande balanço final, isso não terá valor algum.


Você está deixando uma grande fortuna? Parabéns, seus descendentes agradecem. Mas você conhece Steve Jobs pela fortuna que ele deixou ou por suas criações que ajudaram a mudar o mundo?
Aqui deste lado, ele mesmo manda um recado a você que ainda vive e que, quem sabe, ainda tem todo o viço da juventude: “a fortuna não contou em nada no último ato da tragicomédia da vida. Não fosse a importância das invenções para a humanidade, seria apenas um defunto desgraçadamente rico, um miserável que deixou um monte de dinheiro para os outros.” Ou seja, seria um fracasso, tanto quanto eu, que morri miserável ou outros milionários que morreram e ninguém conhece ou lembra mais.

Na hora da morte nada disso dará sentido à vida que você teve. E você saberia disso somente no seu último instante, se eu não estivesse te contando agora.

Se este tipo de coisa for tudo o que você tem para dar sentido à sua vida e à sua morte, lamento decepcioná-lo, mas não será suficiente. E você morrerá com um grande vazio, sentindo-se um completo inútil, como se não tivesse vivido direito, como se tivesse desperdiçado a vida.

E este, caro vivente, é o verdadeiro inferno. O pior dos infernos. Quando chegar no final da vida, você olhar para traz e ver que fez tudo errado, ver que não fez nada que realmente importasse, não entendeu sequer o que era a vida. E não tem como voltar atrás e fazer de novo, não tem como rebobinar esta fita, não tem segunda chance.

Como dizem por aí, a vida não aceita rascunho, não dá para passar a limpo depois.

Sim, parece injusto, porque a mim também não me disseram nada, ninguém me avisou. Fui saber o que era a vida somente no momento da morte. Mas é claro, como não pensei nisso antes, só sabemos o sentido das coisas conhecendo seu extremo oposto ou o que ela não é.

Sabemos o que é luz somente porque conhecemos a escuridão. Sabemos o que é o “B” porque ele não é o “A” nem o “P” e nenhuma das outras letras do alfabeto. Sabemos o que é o bem quando se opõe ao que para nós é o mal. O verde é o verde porque não é o amarelo nem o vermelho nem o azul...

 Como haveríamos de saber então o que é a vida sem conhecer a morte? Por isso, só nos damos conta do que é a vida quando ela já era, no momento exato em que a perdemos e provamos o que é isso que chamamos morte.
E por este mesmo motivo também não temos como saber o que é a morte até que ela nos abrace e fique cara a cara com a vida, seu oposto, seu contrário.


Eu sei que isso não tem graça, que é uma merda, um assunto chato, mas é assim que é. E como eu poderia não te contar estas coisas tendo a chance de fazê-lo?

Então, caro vivente, já deves ter percebido que toda aquela vida cheia de certezas, controles e domínios era fake, né? Era um engodo, e a verdade é que vivemos sem saber sequer o que a vida é.

Deves ter percebido também que nada do que você pensou em deixar como herança ou legado da sua passagem por aqui vai entrar na conta. E se pouco se lixou para legados, não tem problema, mas vais terminar com sabor de vazio, de fracasso total e de desperdício do mesmo jeito.

Agora, se queres chegar no fim e sentir orgulho da vida que tivestes, se quereres sentir que teu tempo e tua vida não foram um desperdício, se não queres ter arrependimentos e sensação de vazio, se não queres morrer como eu, então por favor esqueça tudo o que te mandaram fazer e tudo o que te disseram que era importante.

Daqui deste lado, vejo apenas minhas decisões erradas, os caminhos que não deveria ter pego, os impulsos que não deveria ter atendido e as importância que eu deveria ter mandando às favas.

Do alto da minha morte, vejo que se eu tivesse perseguido aquele primeiro sonho, que começou lá na infância, que acompanhou toda a minha vida como uma paralela, eu teria morrido com sensação de satisfação e de missão cumprida, não com este gosto de fracasso irreversível.

Preste atenção nos sonhos da criança e do adolescente que fostes, pois há um motivo especial para eles terem nascido naturalmente no começo da vida, na força do crescimento e não na aridez da velhice.


Agora, do lado de cá, eu vejo com clareza a outra ponta do novelo, a outra ponta da vida, onde tudo começa, onde tudo se faz, a infância, a adolescência, o extremo oposto da decrepitude e da morte.

Lá estão eles, os sonhos não perseguidos, negligenciados, deixados para depois, preteridos por compromissos desnecessários, que podiam ter sido evitados.

Agora vejo claramente o fio dos meus sonhos esquecidos percorrendo toda a minha vida, voltando a gritar e a se manifestar no final. Cobrando de mim, dedo em riste, minha negligência e abandono.

Dizem que é maturidade esquecer os anseios juvenis em prol das coisas importantes de adulto. Nada mais cínico, covarde e mentiroso. Não creia nesta falácia, caro vivente, pois ela é o prelúdio da sua desgraça.

Nossa existência é mesmo uma cobra engolindo o próprio rabo.

Agora que acabei de morrer, sinto-me como a criança que foi para a escola sonhando em ser professor. Chegando lá, os amiguinhos mais velhos e experientes a convenceram de que os jogos e as brincadeiras do recreio é que eram o verdadeiro sentido da escola. E a isto o menino se dedicou, tonando-se o melhor.

Porém, ao final do ano, descobriu que apesar de ter vencido todos os jogos, de ter se tornado o melhor em todas as brincadeiras, estava reprovado. Tudo o que fez não servia para nada, ele não se tornaria um professor e não tinha como retornar e fazer diferente. Tudo estava consumado.

É assim que me sinto e é assim que se sente alguém no fim da vida, se não perseguiu seus sonhos e quereres mais íntimos e sinceros, deixando-se levar pelos enganos da vida.

Nem família nem carreira nem fortuna nem diplomas nem religião nem empresas, nada, nenhum dos sérios compromissos de adulto lhe dará sensação de missão cumprida e satisfação no momento da morte. Tudo isso desvanecerá como neblina sob o calor do sol, como fumaça ao vento.
Só aqueles sonhos mais sinceros que foram realizados testemunharão a seu favor na hora final.

Dependendo das suas realizações, lembrarão de você um pouco mais, um pouco menos. O que não fará a menos diferença.

E por fim, a grande ilusão acaba. E só.


domingo, 22 de dezembro de 2019

FAROFA DE REBELDIA COM PIMENTA



Palavras de um homem velho



 Ouvi estas palavras de um homem velho, muito velho, que me fez pensar muito, e sentir muito também.

Vocês não sentem algo fervendo dentro de vocês, pelo menos de vez em quando?

Nunca sentiram, como na Terra, uma espécie de vulcão entrando em erupção em suas entranhas, queimando coração e mente?

Nunca lhes pareceu que as pessoas estão mortas, frias de tão mortas, geladas, insensíveis?

Será que tem algo de errado comigo, que ainda na minha velhice sinto estas coisas? E, triste, vejo meus filhos, jovens, sem tesão, sem vida, sem revolta, sem revolução, sem tempestades, sem desobediência, sem ousadia, seguindo a manada que quer ter ao invés de viver, de realizar, de experimentar, de revirar mundo.

E ele nos perguntava.


Vocês não percebem isso, professores, educadores?

Estão dormentes também, a pós-modernidade entorpeceu vocês também, foi? Viraram pregadores de estabilidade e obediência, como aquela que se tem no túmulo?

Será que só eu vivo estas tempestades internas devastadoras que arrastam tudo que encontram pela frente, criando caos e um redemoinho de ideias e sentimentos incontrolável dentro de mim?


 E como gosto!

Isto é uma doença? Ou será que é a cura?

Será que só eu vejo as pessoas se tornando mornas e insossas?

Até me dá vontade de chorar quando vejo jovens tão velhos, mas tão velhos e sem vida que parece que já estão mortos, só que ainda andam e falam e fazem mecanicamente algumas coisas.

A vida das pessoas parece de cera. Parece que estamos vivendo um pesadelo em um museu de cera, com medo que qualquer calorzinho derreta nossas vidas. Tudo tão arrumadinho e fixo, de uma assepsia e esterilidade nauseante. Mas isso não é próprio do espírito humano, pelo amor de Deus!

Quando foi que o sangue virou esta água suja e morna, dentro desta aparência de cera?

Quando foi que a vida real se tornou esse faz e conta? Uns fazem de conta que vivem, outros fazem de conta que acreditam e todos fazem de conta que são felizes e cumpridores de divino destino.

Pro inferno!

Até parece que algum tipo de entorpecente está sendo administrado ao gênero humano, tornando-nos bonecos, autômatos, sem sangue, sem vida.  

Coloquem pimenta nas mamadeiras destes adultos infantis para ver se acordam deste sono profundo que os faz manter um sorriso amarelo e congelado no rosto, sempre o mesmo para todas as ocasiões, como o pretinho básico que combina com tudo.


Não se vive mais, só se roda um software.

Eu poderia continuar escrevendo as coisas que ouvi daquele homem, mas acho que isso já lhes passa uma ideia da ideia que ele quis passar.

E eu fiquei como?


Lembrei do esforço que eu fazia preparando as aulas, elaborando estratégias didáticas e pedagógicas, maneiras diversas de abordar os assuntos, projetos interdisciplinares para ensinar os conteúdos. O esforço que eu fazia, e que amava fazer, ministrando as aulas com paixão. Mas nada empolgava aquelas crianças, aqueles adolescentes e jovens. Nada criava paixão, nada era capaz emocioná-los, nada os seduzia ou arrepiava, nem mesmo as viagens. Tudo era chato e cansativo.

Temo que aquele homem velho tem alguma razão no que disse, pois parece que as pessoas estão perdendo até a capacidade de chorar, e isto não é um bom sinal. Talvez um dia, por processo de evolução, venhamos a nascer sem glândulas lacrimais, pois dizem que órgão que não se usa, se atrofia.

E aí passaremos a nascer sem o dispositivo da empatia, se é que ele ainda existe. Não há sofrimento ou injustiça que faça um ser humano da pós modernidade sair do seu lugar, mudar de rota, mexer em sua vida, a maioria segue o programado. Sempre.


Há uma geração sobre a Terra que desconhece Fernando Pessoa ou Manuel de Barros, que não vê o menor sentido na arte e na poesia, que não se emociona ouvindo uma música, diante de uma paisagem natural ou de um abraço sincero. Tudo é enfadonho.

Já dizia um outro velho sábio: “sem tesão não há solução.”

E não se trata apenas de uma questão de escolha, quando um sonha em acumular 1 milhão antes dos 30 anos e outro sonha em conhecer 30 países, por exemplo. Há algo que é anterior às escolhas feitas. E é algo sobre educação, sobre os valores que os constituem, que os fazem ser quem são, é sobre como cada um vê a vida e entende o mundo.

A escolha de acumular 1 milhão ou conhecer 30 países antes dos 30 anos é só um exemplo para ilustrar que não é só uma questão de escolha, mas diz quem cada um é, diz sobre a índole de cada um.

Uma escolha não é um ponto isolado na linha da vida, ela tem raízes no passado e consequências no futuro.

Ainda que alguém tivesse alguma vontade de optar por conhecer os 30 países, abrindo mão de acumular 1 milhão, não teria coragem de fazê-lo. Nossa configuração social não permite esta escolha. Só a faz quem tem rebeldia e ousadia, quem desobedece.

Mas boa parte desta geração não vive mais, roda um software, como disse o velho. Por isso não chora mais, não se arrepia mais, não se emociona, não tem tesão pela vida, não tem coragem, não desobedece o sistema de crenças, não encara a realidade, não questiona as regras, os costumes e dogmas. 
Sente medo, medo de si próprio, das próprias fraquezas e limitações.


Isso até me lembra aquela história da menina que perguntou para a mãe porque tinha que cortar o rabo e a cabeça do peixe para assá-lo. E a mãe respondeu que não sabia, que tinha aprendido assim com a sua mãe. Então a menina foi perguntar para a avó, que deu a mesma resposta, que tinha aprendido assim com sua mãe e assim ensinou para a filha. E a jovem não se deu por satisfeita e foi perguntar para a bisavó, que respondeu: “não, minha bisneta, não precisa cortar a cabeça e o rabo, a gente contava naquela época porque o peixe não cabia na forma que tínhamos, só isso.”

Quem não questiona e não se questiona fica assim, só repete, sem saber direito o porquê. E repete uma vida inteira e muitas vezes tem problemas, deseja mudar, mas está condicionado, fica enredado, preso, porque não ousa perguntar, porque não ousa mudar, chutar o balde, questionar as regras.

Tá todo mundo muito preocupado com o que os outros irão dizer, com o que irão pensar, com a imagem que farão, com a foto, com as aparências.

A pós modernidade tem produzido criaturas sem sal, sem fogo, sem sangue. Falta pimenta, falta indignação, ação, numa farofa louca que tire a gente deste chão, desta lona.

O velho está certo: estamos perdendo alguma coisa, estamos deixando passar alguma coisa importante que nos poderia mudar a vida e o mundo. 
Como se tivéssemos algum poder que estamos desperdiçando. Como se estivéssemos amarrados por uma folhinha de capim achando que é uma corrente de aço.

E é quando se sente isso que aquele vulcão acorda e tudo começa a ferver. Então, gosto de dar atenção. E não jogo água, jogo gasolina.



domingo, 15 de dezembro de 2019

O PODER DA NARRATIVA




  
Você lembra que lá na escola os professores de Português e Redação ensinavam a produzir textos dissertativos?

E não foi em um ano só, não. Durante toda a sua vida escolar este tipo de texto apareceu em quase todos os anos e séries. 

 Lembra que explicaram que este tipo de texto é o que trata de argumentos, de ideias e opiniões, de pontos de vista, de análise e de crítica?

Lembra o quanto ensinavam e exercitavam a produção e a interpretação deste tipo de texto? Chegava a enjoar, não é mesmo?

Talvez isso ocorra porque geralmente este é o tipo de texto que é mais solicitado nas provas do ENEM, vestibulares e concursos. Ou talvez seja por tradição escolar e outros motivos.

Mas o fato é que é bem menos frequente solicitarem e orientarem a criação de textos narrativos, ensinando a criá-los com todos os seus elementos. Também não era, e não é, muito comum fazerem exercício de interpretação de narrativas, como um conto ou uma fábula, por exemplo.

Embora nenhum tipo de texto seja puro, mas são classificados segundo a predominância, tenho a impressão de que a dissertação tem lugar privilegiado no meio acadêmico em relação à narração.

Entretanto, olhando para o contexto social, pragmático, do passado e contemporâneo, é possível identificar uma guerra, uma disputa quase constante e por vezes bem acirrada entre narrativas.


São narrativas tentando prevalecer sobre as outras, dominar o enredo social, atrair mais simpatizantes, elegendo-se como prediletas e dominantes.

A disputa entre religiões pode ser vista como uma disputa entre narrativas, pois é a história contada que convence ou não convence. Os livros sagrados são basicamente compostos de narrativas, que contam a saga de um deus, ou de deuses, e seus humanos escolhidos.

O embate entre criacionismo e teoria da evolução, por exemplo, é uma disputa entre duas narrativas que contam como o Universo e a vida teriam surgido. Cada qual quer ter a razão, quer ser reconhecida como predominante, como verdade absoluta.  

No campo político, a disputa não tem sido outra, senão uma guerra entre narrativas no terreno das ideologias. As ideologias tratam de ideias, porém são criadas narrativas, com enredos simplistas, divididos em um lado do bem e um lado do mal, com bandidos e mocinhos, que dominam a cena.

Cada narrador coloca-se e coloca os seus personagens no papel de mocinho que luta contra o mal, que logicamente é o seu adversário. Cada narrativa domina, seduz uma quantidade de simpatizantes, apoiadores, crentes ou seguidores, o que serve de medida de força, dominação, controle, prevalência.

Isto é bem nítido no campo da religião e da política. Pode prestar atenção que você vai comprovar.

Quem não está habituado com narrativas, quem não sabe como lidar com elas, quem não aprendeu como elas são compostas, quais são seus elementos, suas estratégias, como se faz a análise de narrativas, acaba ficando exposto e vulnerável. Presa fácil é quem toma partido de uma narrativa, quem é convencido por ela, tomando-a como verdade absoluta.

Nenhuma narrativa é uma verdade absoluta. Nenhuma.



Este tipo de acontecimento já provocou desastres na humanidade. Aliás, arrisco-me a dizer que os maiores desastres que a humanidade já viveu foram provocados por narrativas que convenceram incautos sem nenhum senso crítico ou capacidade de leitura. Narrativas que arrastaram pessoas para o caos.

Ou não foi uma narrativa bem contada por Jim Jones, da Igreja Cristã do Evangelho Pleno, que provocou o suicídio em massa e a morte de 918 seguidores, em 1978, nos Estados Unidos?

Mas as narrativas, por mais persuasivas que sejam, podem ser completamente ficcionais. Ainda que sejam verossímeis, podem conter partes da realidade ou elementos verídicos, podem privilegiar um ponto de vista em detrimento de outro, podem utilizar-se de recortes históricos, de intertextualidade, para aumentar seu poder de convencimento. E ainda assim serem apenas narrativa ficcional.

Enquanto um texto dissertativo tem o argumento e o convencimento como elementos constitutivos, ou seja, elementos que o caracterizam, e por isso são claramente identificáveis, a narrativa tem estes elementos de forma subliminar. 

Nas narrativas, a ideologia, os mecanismos de convencimentos, as argumentações residem nas entrelinhas, nas inferências, nas relações semânticas, no diálogo com a realidade e com o interior do leitor.

A ascensão de Hitler e do Nazismo se deu sobre uma narrativa construída. A narrativa dizia que o alemão era um homem especial, uma raça superior, que precisava se livrar e se proteger da miscigenação para criar uma raça pura.
A narrativa nazista contava que o povo alemão estava contaminado com o mal, que eram os judeus, que tinham grande poder econômico e estavam sugando a pátria alemã, explorando o povo alemão, empobrecendo o país. Eles precisavam ser eliminados antes que dominassem tudo e todos e descaracterizassem a Alemanha. A narrativa nazista dizia ainda que haviam outros personagens do mal que precisavam ser extintos para o bem da Alemanha e do povo alemão, como homossexuais, ciganos, testemunhos de jeová, etc.


A história foi muito bem contada por um homem que nem era alemão, era austríaco: Adolf Hitler. Provavelmente não foi criada apenas por ele, mas foi identificado nele o narrador, o contador ideal.

E todos os elementos necessários estavam ali, o inimigo trazendo o caos, verossimilhança (podia ser que houvesse mesmo uma crise econômica, e quando não há, basta criar uma), o elemento “medo” e o mocinho, o herói, que aparece com a solução e salva a princesa.

Além disso, tem todo o trabalho de marketing para promoção da novela, para criação de medo e forte companha contra os vilões.

Esta narrativa foi comprada pela maioria dos alemães, foi tragicamente aceita sem questionamentos, e o resultado disso todos sabemos qual foi.

Sem a construção de uma boa narrativa e sem fazê-la predominar sobre todas as outras, a tragédia não teria sido possível.

No final, a princesa nem era princesa, os bandidos não eram tão bandidos nem os mocinhos tão mocinhos.

As pessoas não entenderam que se tratava de uma narrativa e entenderam menos ainda que a narrativa era ficcional. Não sabiam que não existe narrativa pura, que em todas elas há veiculação de ideias, há argumentos, convencimento, elementos da dissertação, assim como da descrição. Não sabiam que nenhuma narrativa é verdade absoluta, infelizmente.

Um inquérito, por exemplo, busca montar uma narrativa, inclusive com reconstituição de ações para nela se espelhar. A criança que está com medo do pai, da mãe ou da professora cria uma narrativa que a proteja das possíveis consequências da verdade.

Um conto, um romance, uma novela, uma crônica, uma fábula, uma notícia, uma biografia são alguns exemplos de narrativas. 

Ler, estudar, entender, habituar-se com a sua estrutura, criar familiaridade com suas dinâmicas, saber quais são os elementos que fazem parte de uma narrativa é de suma importância para ter a capacidade de lidar com o bombardeio de narrativas que nos tentam cooptar diariamente, cooptar nossa mente, nossas emoções, nossa vida.

Já percebeu que são as narrativas de sucesso que estão sendo usadas pelos bancos, pelas financeiras, pelos fabricantes de carros, pelas construtoras e corretoras, pelas grande companhias e por todo o mercado para convencer e atrair clientes? Veja como as propagandas são narrativas com elementos de sucesso, de aventura, de felicidade, de medo, de coragem, de conquista, de ousadia e de tantas coisas que todos querem.

Narrativas têm grande poder e para não ser vítima delas é preciso ter capacidade de leitura.  Saber ler profundamente.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

UMA BIBLIOTECA NO BOLSO


A experiência da leitura



Antes de começar a escrever sobre livros e a dar dicas de leitura aqui no blog, quero refletir um pouco sobre a ação de ler, sobre o hábito de ler, sobre a posição do leitor.

Além de ser formado em letras e de ser professor de literatura, sou um leitor ávido desde a minha adolescência. Por isso eu sei que o cheirinho do livro tem significado, provoca uma sensação no leitor, proporciona prazer. A experiência da leitura ultrapassa muito o ato de ler.

O hábito de ler sempre foi nobre, porque ler era um privilégio de poucos, que pertenciam à nobreza. Poucos afortunados aprendiam a ler e tinham acesso a livros. E livro não era algo popular, não era facilmente reproduzido.

Desde o escriptorum, local do reino onde se reproduziam os códices, os livros em rolos de pergaminhos, até o tablet e o celular conectados à internet, passando pela impressão com tipos móveis, criada por Gutemberg, no século XV, a experiência de leitura vem se modificando constantemente.


Até a posição, a postura do leitor vem mudando. Antes usava as duas mãos, os dois braços, em posição de desenrolar o livro. Depois folheava o livro e hoje movimenta as páginas digitais e abre links com a ponta de um dedo e, talvez, com comando de voz.

Mas a grande vantagem em toda esta evolução é a popularização, democratização e universalização da arte da escrita. Com um tablet ou smartphone é possível acessar livros traduzidos de todo o mundo e de todas as épocas. E é possível levar no bolso, para onde for, uma biblioteca com milhões de livros à disposição.

A internet é chamada também, em áreas de conhecimento como a Teoria da Literatura, Teoria da Comunicação ou Análise do Discursos, de hipertexto. Ou seja, um texto gigantesco composto de tudo o que nele é escrito, mudando o tempo todo, prestando ou não. Há, portanto, muito lixo, mas também há muitos tesouros.

Se na internet encontra-se lixo como fake news e panfletagem barata, também se pode ler gratuitamente a Eneida, de Virgílio; O Processo, de Kafka; O Inferno, de Dante; Dom Quixote, de Cervantes; Os irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski e praticamente todas as grandes obras, as maiores já produzidas na história da humanidade, das antigas às mais recentes.


Estar entre prateleiras de livros tem seu valor, sem dúvida, mas é preciso reconhecer que nunca antes na história da humanidade tivemos acesso a um número tão grande de obras, de forma fácil e gratuita.

É incalculável a quantidade de sites, aplicativos, empresas, instituições, portais que oferecem ferramentas e obras para leitura gratuitamente.

Por exemplo, a Amazon, além de comercializar grandes obras digitais e impressas, oferece mais de 1 milhão de e-books para você ler de graça e a ferramenta de leitura Kindle, aplicativo que conta com versões pagas e gratuitas, com diversos recursos para tornar a experiência de leitura mais agradável e confortável em diferentes aparelhos, seja em um celular, tablet ou computador.  

Isto significa que as opções de leitura se multiplicaram ao infinito. Mas não só, a postura física do leitor pode variar dependendo do aparelho que esteja usando para ler e sua postura como sujeito leitor também.

A autonomia do leitor aumentou, pode acessar a sua biblioteca gigantesca de onde estiver, bastando apenas sinal de internet e um aparelho para se conectar.

Não é mais necessário um espaço enorme para armazenar centenas de obras, a não ser que se queira.

Economicamente as coisas também mudaram. Os livros impressos no Brasil são, e sempre foram, caros e quem gosta de ler não lê apenas um livro por mês.

Os aplicativos e aparelhos possibilitam fazer mudanças na fonte, na página, acessar links, tornar a tela mais confortável à visão etc.

Não, caro leitor, os avanços tecnológicos não significam a morte do livro impresso nem que você tem que aderir a eles ou se desfazer dos seus amados livros. Muito pelo contrário, através da internet podemos comprar livros impressos de todo o mundo, estando em qualquer lugar, sem precisar que neste lugar tenha uma livraria e ainda pagando mais barato.

Foi um longo caminho desde os pergaminhos até aqui, não foi?

Quem diria que há alguns séculos somente alguns nobres tinham o direito de ler. E veja, hoje, a facilidade de acesso, a democratização da leitura e da literatura.

Mas há aquelas pessoas que dizem que não gostam de ler. O que eu duvido. Não creio que esta seja uma postura definitiva, acho que apenas estas pessoas não receberam a orientação correta nem a indicação de um livro que faça eco no se ser. Ainda assim, todos têm a liberdade de ler ou de não ler.

E há os que leem, que exercem este direito, que usufruem das facilidades do hipertexto, mas escolhem mal, escolhem se alimentar de lixo, de falsos filósofos, de teorias estapafúrdias, de mentiras, de falácias, lendo engano. O que não deixa de ser uma liberdade, quem irá lhes negar tal direito? Ninguém.  
A grande e democrática oferta colocou o leitor em uma posição diferente. Passa a exigir que o leitor tenha autonomia, ele passa a ter liberdade de escolha. Mas o leitor, agora, precisa de critérios para exercer a liberdade de escolha, sob pena de naufragar no enorme oceano de opções.

E é aí que, tentando se achar, muitos se perdem.  

Não sou marinheiro, mas nesse mar, da leitura e da literatura, arrisco-me a dar pitaco, pois como dizia o poeta: “Navegar é preciso”.

domingo, 1 de dezembro de 2019

O HOMEM QUE PAGA PARA SOFRER


Escolhendo a ferramenta


Na minha profissão é bem comum ver pessoas se esforçando muito por “um lugar ao sol”, para “ser alguém na vida”, como se costuma dizer. O que geralmente significa ter uma profissão, uma carreira profissional, um status social, reconhecimento, ser avaliado positivamente, ser aprovado.

Neste processo é igualmente comum, e já vi acontecer muitas vezes, a pessoa conseguir o que quer depois de muito esforço, alcançar seus objetivos, tornar-se um profissional, ser reconhecido e avaliado positivamente, ser aprovado e detestar o que alcançou, sentir-se um escravo, manter-se preso por anos naquela situação insuportável e terminar a vida doente.

Claro que não é culpa de ninguém nem é questão de culpa, a pessoa alcançou exatamente o que buscou livremente, tomou as suas próprias decisões e elas tiveram resultados, manteve-se onde estava por decisão própria.

A questão é outra, é sobre o saldo da conta.



Cada um de nós, ao nascer, recebe uma conta com um saldo que não se sabe de quanto é. Podemos gastar livremente, da maneira que desejamos, mas não sabemos quanto temos ou quando irá acabar nossa riqueza.

Refiro-me a um capital mais valioso do que dinheiro: ao capital vital, à vida, ao tempo de vida que se tem.

Quem sabe quanto tempo tem? Qual é o saldo desta conta?

Nosso saldo pode zerar aos 14, aos 27, aos 50, aos 60 ou aos 90 anos, não sabemos. E quando nosso tempo tiver que acabar, o saldo da conta bancária, por maior que seja, não será capaz de mudar isso.

Já perdi, e provavelmente você também, pessoas próximas de todas as idades. Perdi um filho com dois dias de vida e meu pai com 60 anos. Perdi amigos com 23, parentes com 27, amigas com 55, com 19 anos e nem o dinheiro nem a profissão nem a carreira nem status nem anonimato, nenhuma situação social poderia estender os seus dias. O saldo da conta do tempo deles acabou.

A importância deles para os que ainda vivem é quase nenhuma, não importa o quanto foram aprovados em vida, quanta riqueza acumularam, se foram “alguém na vida” ou não. Estão igualados, nivelados pelo nível mais baixo, como faz a lei da entropia. Não são nada mais do que longínqua memória, fumaça eu se esvai com sopro de leve brisa.

Então, que diferença faz?


A única diferença entre eles é como usaram o capital que receberam ao nascer. O que fizeram com o saldo da conta do tempo, do tempo de vida.

Se lhe fosse dada uma conta bancária com um valor em dinheiro para você gastar livremente, mas sem saber qual é o saldo, como você gastaria?

Você não sabe quanto tem nem quando irá acabar. Mas enquanto tem, não há limites, a não ser aqueles que você mesmo coloca.

Iria usar mal este dinheiro? Iria querer desperdiçá-lo? Iria usá-lo para o seu sofrimento, para se machucar?

Então por que alguns usam o tempo que têm vivendo situações desagradáveis, que lhe fazem sofrer, como se nunca fosse acabar?  Por que achar que sempre haverá um amanhã para ser feliz se na verdade não se sabe o saldo desta conta?

Não se tem certeza de quando tempo se tem, mas se tem certeza absoluta que este tempo acabará.



E pode acabar ainda hoje, amanhã, daqui a uns meses ou muitos anos, mas esta hora vai chegar inevitavelmente, não importa que tipo de vida se tenha levado, se boa ou ruim, com ou sem dinheiro, sendo “alguém na vida” ou sendo “ninguém”. O tempo vai acabar do mesmo jeito para todos.

No final, a opinião das pessoas não terá nenhum valor e geralmente todos são elogiados ao morrer e esquecidos em seguida.

Suportar uma situação de vida insatisfatória, insalubre, apostando que no futuro haverá tempo de se libertar e ser feliz é o mesmo que gastar o dinheiro de uma conta de saldo desconhecido para se machucar, para se ferir, apostando que depois haverá dinheiro para o curativo, para o médico, para o alívio.

Com dinheiro, em sã consciência, ninguém faria isso, mas muitos fazem com seu tempo de vida.

Quando eu me aposentar, então irei descansar e aproveitar a vida.

Quando meus filhos crescerem, então deixarei este casamento que me faz sofrer.

Quando eu terminar de pagar o apartamento, deixo este emprego nojento.

Meu sonho é viajar, mas só posso ir depois que eu me aposentar, agora não tenho tempo.

“Agora não tenho tempo”, “agora não posso”, “agora não dá” são expressões que acabam com a vida de qualquer um e não fazem o menor sentido.

Pois só agora se tem tempo, só há o tempo de agora, o depois é que não se tem.


“Não posso” deve ser substituído por “não quero”, porque tudo pode ser mudado, o que pode acontecer é a pessoa não admitir, não querer tomar certas decisões, entendendo determinada escolha não é admissível para si.

Nestes casos, a escolha que se está fazendo é a de permanecer gastando a riqueza que recebeu para se ferir, para o próprio sofrimento. E ferido, machucado, infeliz, desperdiçando o tempo, não se pode ser útil e positivo na vida de ninguém.

Sempre há opções, sempre há escolhas, basta tomada de decisão.

O tempo de agora é o único que se tem e deve ser vivido plenamente, buscando realizar sonhos, viver com satisfação, de forma a poder dizer que faria tudo outra vez, que repetiria com prazer, que faria as mesmas escolhas, porque não deseja outro caminho, outra vida, outro uso do seu tempo.

Pode ter certeza de que, ao chegar aos 50 ou 60, e chega rápido, muito rápido, todos olham para traz e avaliam a vida que tiveram. Não há nada mais desesperador do que constatar que foi uma merda, do que saber que não era aquilo que queria ter vivido, porque o tempo gasto não volta mais para a conta, não dá para fazer de novo.

O único tempo que se tem para fazer diferente é o de cada amanhecer em que se abre os olhos, uma nova chance, mais uma oportunidade, até chegar aquele em que tudo acaba.