A
você, que ainda respira.
Pois não se engane, isso vai
parar um dia. Não se sabe em qual dos dias acontecerá o último alento, só se
sabe que acontecerá.
Foi assim comigo e é assim com
todo mundo, disso ninguém escapa.
Você pode não ter certeza de
nada, nem de Deus nem do Diabo, nem do céu nem do inferno, mas que vai parar de
respirar, a isso vai. Disso não duvide nunca e não se esqueça nem por um
instante.
Este foi meu infortúnio,
esqueci-me de que morreria e vivi como se a vida fosse para sempre. Não é. A
morte veio. Traiçoeira, a danada, pegou-me de surpresa e eu nem tinha vivido
direito ainda. Deixava pra depois.
Se você nunca recebeu conselhos
de um defunto, então preste muita atenção e aproveite bem estes que lhe dou, se
quiser ter uma boa vida, ou uma boa morte.
Caro vivente, asseguro-te que
terminei a vida como um rotundo fracasso. O mais completo e absoluto fracasso
em todos os sentidos. O que significa dizer que meu tempo aqui foi um
gigantesco desperdício.
E vou explicar porque encerrei
minha passagem pela Terra com a sensação de mediocridade, de ter fracassado
como pai, marido, filho, amigo, irmão, profissional, enfim, como ser humano.
No final, percebi que passei
por este mundo e estava indo embora sem deixar nada, mas nada mesmo! Nenhuma
marquinha que se aproveitasse, nada de realmente importante, que valesse a pena.
Caro vivente, pode acreditar
no que lhe digo, no momento de fechar a conta da existência, aquilo que pensei
que fosse fazer parte da operação, que fosse contribuir para um resultado
positivo, não teve a menor importância. Zero à esquerda.
Os filhos que vieram através
de mim não contaram para evitar minha sensação de fracasso. Desculpe-me a
franqueza de defunto, mas, ao que me consta, se reproduzir até os ratos e as
baratas se reproduzem. E há muitos seres peçonhentos que cuidam melhor das suas
crias do que nós, “humanos”.
Todo tipo de homem e mulher se
reproduz, dos mais vis aos mais nobres e em nenhum grande legado você verá
filhos. O vil permanece vil e o nobre permanece nobre, pelo que é.
Não se vê no legado dos
grandes homens e das grandes mulheres da história da humanidade filhos e
filhas. Você sabe da teoria da relatividade, mas não dos filhos de Albert
Einstein. Você conhece a psicanálise, mas não os filhos de Freud. Você sabe das
façanhas de Darwin, mas não dos seus filhos. Amélia Earhart é conhecida porque
voou, não porque se reproduziu. Marie Curie é conhecida pela proeza de ganhar
dois prêmios Nobel e não dois filhos. Nenhum grande nome é lembrado pelos
filhos que teve ou que deixou de ter. Portanto, filhos não entram nesta conta e
você saberá disso na hora derradeira. Aproveita que estou te contando antes.
Está orgulhoso ou orgulhosa
porque conseguiu fazer uma faculdade. OK, muito bem, parabéns. Mas isso também
não entra na conta, você sabe a grade quantidade de idiotas com diploma que existe.
O valor do que se faz não depende de diplomas universitários nem dos títulos
acadêmicos que se possa ter conquistado. Naquele último momento, no grande balanço
final, isso não terá valor algum.
Você está deixando uma grande
fortuna? Parabéns, seus descendentes agradecem. Mas você conhece Steve Jobs pela
fortuna que ele deixou ou por suas criações que ajudaram a mudar o mundo?
Aqui deste lado, ele mesmo manda
um recado a você que ainda vive e que, quem sabe, ainda tem todo o viço da juventude:
“a fortuna não contou em nada no último ato da tragicomédia da vida. Não fosse
a importância das invenções para a humanidade, seria apenas um defunto desgraçadamente
rico, um miserável que deixou um monte de dinheiro para os outros.” Ou seja,
seria um fracasso, tanto quanto eu, que morri miserável ou outros milionários
que morreram e ninguém conhece ou lembra mais.
Na hora da morte nada disso
dará sentido à vida que você teve. E você saberia disso somente no seu último
instante, se eu não estivesse te contando agora.
Se este tipo de coisa for tudo
o que você tem para dar sentido à sua vida e à sua morte, lamento
decepcioná-lo, mas não será suficiente. E você morrerá com um grande vazio,
sentindo-se um completo inútil, como se não tivesse vivido direito, como se
tivesse desperdiçado a vida.
E este, caro vivente, é o
verdadeiro inferno. O pior dos infernos. Quando chegar no final da vida, você
olhar para traz e ver que fez tudo errado, ver que não fez nada que realmente
importasse, não entendeu sequer o que era a vida. E não tem como voltar atrás e
fazer de novo, não tem como rebobinar esta fita, não tem segunda chance.
Como dizem por aí, a vida não
aceita rascunho, não dá para passar a limpo depois.
Sim, parece injusto, porque a
mim também não me disseram nada, ninguém me avisou. Fui saber o que era a vida
somente no momento da morte. Mas é claro, como não pensei nisso antes, só
sabemos o sentido das coisas conhecendo seu extremo oposto ou o que ela não é.
Sabemos o que é luz somente
porque conhecemos a escuridão. Sabemos o que é o “B” porque ele não é o “A” nem
o “P” e nenhuma das outras letras do alfabeto. Sabemos o que é o bem quando se
opõe ao que para nós é o mal. O verde é o verde porque não é o amarelo nem o
vermelho nem o azul...
Como haveríamos de saber então o que é a vida
sem conhecer a morte? Por isso, só nos damos conta do que é a vida quando ela
já era, no momento exato em que a perdemos e provamos o que é isso que chamamos
morte.
E por este mesmo motivo também
não temos como saber o que é a morte até que ela nos abrace e fique cara a cara
com a vida, seu oposto, seu contrário.
Eu sei que isso não tem graça,
que é uma merda, um assunto chato, mas é assim que é. E como eu poderia não te
contar estas coisas tendo a chance de fazê-lo?
Então, caro vivente, já deves
ter percebido que toda aquela vida cheia de certezas, controles e domínios era
fake, né? Era um engodo, e a verdade é que vivemos sem saber sequer o que a
vida é.
Deves ter percebido também que
nada do que você pensou em deixar como herança ou legado da sua passagem por
aqui vai entrar na conta. E se pouco se lixou para legados, não tem problema,
mas vais terminar com sabor de vazio, de fracasso total e de desperdício do
mesmo jeito.
Agora, se queres chegar no fim
e sentir orgulho da vida que tivestes, se quereres sentir que teu tempo e tua
vida não foram um desperdício, se não queres ter arrependimentos e sensação de
vazio, se não queres morrer como eu, então por favor esqueça tudo o que te mandaram
fazer e tudo o que te disseram que era importante.
Daqui deste lado,
vejo apenas minhas decisões erradas, os caminhos que não deveria ter pego, os
impulsos que não deveria ter atendido e as importância que eu deveria ter
mandando às favas.
Do alto da minha morte,
vejo que se eu tivesse perseguido aquele primeiro sonho, que começou lá na
infância, que acompanhou toda a minha vida como uma paralela, eu teria morrido
com sensação de satisfação e de missão cumprida, não com este gosto de fracasso
irreversível.
Preste atenção nos sonhos da
criança e do adolescente que fostes, pois há um motivo especial para eles terem
nascido naturalmente no começo da vida, na força do crescimento e não na aridez
da velhice.
Agora, do lado de cá, eu vejo
com clareza a outra ponta do novelo, a outra ponta da vida, onde tudo começa, onde
tudo se faz, a infância, a adolescência, o extremo oposto da decrepitude e da
morte.
Lá estão eles, os sonhos não
perseguidos, negligenciados, deixados para depois, preteridos por compromissos desnecessários,
que podiam ter sido evitados.
Agora vejo claramente o fio
dos meus sonhos esquecidos percorrendo toda a minha vida, voltando a gritar e a
se manifestar no final. Cobrando de mim, dedo em riste, minha negligência e
abandono.
Dizem que é maturidade
esquecer os anseios juvenis em prol das coisas importantes de adulto. Nada mais
cínico, covarde e mentiroso. Não creia nesta falácia, caro vivente, pois ela é
o prelúdio da sua desgraça.
Nossa existência é mesmo uma cobra
engolindo o próprio rabo.
Agora que acabei de morrer, sinto-me
como a criança que foi para a escola sonhando em ser professor. Chegando lá, os
amiguinhos mais velhos e experientes a convenceram de que os jogos e as
brincadeiras do recreio é que eram o verdadeiro sentido da escola. E a isto o menino
se dedicou, tonando-se o melhor.
Porém, ao final do ano,
descobriu que apesar de ter vencido todos os jogos, de ter se tornado o melhor
em todas as brincadeiras, estava reprovado. Tudo o que fez não servia para nada,
ele não se tornaria um professor e não tinha como retornar e fazer diferente.
Tudo estava consumado.
É assim que me sinto e é assim
que se sente alguém no fim da vida, se não perseguiu seus sonhos e quereres
mais íntimos e sinceros, deixando-se levar pelos enganos da vida.
Nem família nem carreira nem
fortuna nem diplomas nem religião nem empresas, nada, nenhum dos sérios compromissos
de adulto lhe dará sensação de missão cumprida e satisfação no momento da morte.
Tudo isso desvanecerá como neblina sob o calor do sol, como fumaça ao vento.
Só aqueles sonhos mais sinceros
que foram realizados testemunharão a seu favor na hora final.
Dependendo das suas
realizações, lembrarão de você um pouco mais, um pouco menos. O que não fará a
menos diferença.
E por fim, a grande ilusão
acaba. E só.