quinta-feira, 22 de agosto de 2019

NÃO TENHO TEMPO



Na era da falta de tempo, terceiriza-se até as decisões e o pensar.


Se não dá tempo, então paga alguém pra fazer, não é assim?

Mas tem gente terceirizando tudo e a principal desculpa é a falta de tempo. 
Que é a desculpa mais usada e também a mais esfarrapada de todas.

Existe falta de interesse, falta de organização, de vontade, de foco, de prioridade, mas não falta de tempo.

O tempo continua o mesmo, do mesmo jeitinho e com os mesmos mistérios. O homem é que quer colocar dentro de um certo espaço de tempo mais do que cabe nele.

É insanidade querer colocar um trem com dezenas de vagões na sala de casa sem estragar nada. Algo certamente vai dar errado. Mas ainda assim esta atitude é uma decisão pessoal, não é algo imposto a alguém nem impossível de ser alterado.

E com esta graciosa falácia da falta de tempo se tem terceirizado tudo: a limpeza, a manutenção, a cozinha, a arrumação, a educação e a criação dos filhos...

Terceiriza-se a saúde mental e emocional, a alegria e o ânimo, porque não se tem mais tempo para cuidar destas coisas. Além disso, existem pessoas e substâncias destinadas a esta tarefa.  

Terceiriza-se a saúde espiritual e física, porque também não se tem tempo para isso e existem pessoas especializadas nestas áreas. Há quem ensine a comer, a se mexer e até a respirar da forma “correta” e há aqueles que cuidam da espiritualidade dos outros.

Terceirizam-se as decisões, o planejamento da vida, da carreira, do matrimônio e até os pensamentos, porque não se tem mais tempo de pensar e já há quem pense pelos outros, quem reflita sobre o casamento dos outros, quem estabeleça as prioridades dos outros, quem use a mente pelos outros.

Então terceiriza-se a própria vida, porque não se tem tempo de viver nem de pesar a própria vida.

Maravilhosa é a falta de tempo, que serve de máscara ao medo, à incompetência, à preguiça, ao desinteresse, à desorganização.

Não se fez a visita, não se procurou a pessoa, não se fez o que prometeu por pura falta de tempo.

Terceirizou-se a sinceridade, a hombridade, o caráter e a verdade para a falta de tempo.

O sono pode ser terceirizado, deixado a cargo do Diazepan; a atenção e concentração podem ficar a cargo da Ritalina; a calma, o equilíbrio e a alegria, dos pais e dos filhos, quem sabe se entrega ao Prozac ou a outra substância qualquer. Para cada área que se deixa de cuidar surge um substituto a quem se pode terceirizar.

Algumas destas lacunas que foram criadas deram lugar a novas profissões para preenchê-las.

Quer muito, mas não tem tempo. Embora encontre tempo para todo o resto e o dia continua tendo 24 horas e a semana 7 dias. Exatamente como era há 50 anos.

O que mudou, então?

Talvez o homem esteja se tornando mercadoria, coisa, máquina, aparelho, eletrodoméstico, visto que está tendo que terceirizar as tarefas humanas.

Por outro lado, as tarefas humanas são cada vez mais exercidas por máquinas ou por profissionais, e a humanidade se robotiza.  

Parece que as pessoas estão perdendo a capacidade de exercerem as mais elementares atribuições humanas e de cuidarem da própria vida e da família.

Nem mesmo a decisão de comprar é mais exercida com humanidade e liberdade, é implantada, é enxertada.

Até as necessidades são terceirizadas, são criadas por outros ou estabelecidas por algoritmos. Aparece no meu feed, por exemplo, o que o algoritmo decide que é importante para mim, seja publicidade ou não.


Além dos softwares que leem, analisam e dirigem as escolhas das pessoas, além dos químicos que fazem aquilo que não se tem tempo de desenvolver, paga-se o coach pessoal, o coach profissional, o coach de relacionamentos, o mentor, o analista, o personal trainer, o personal stylist, o personal organizer, o marido de aluguel, o personal tourist, o pastor, o guia espiritual, a babá...

Se antes as pessoas conversavam, se aconselhavam e ouviam o pai, o avô, os amigos, agora, não tendo tempo para isso, elas pagam alguém que faça este papel. E então acham tempo e confiam, porque estão pagando um profissional.

Se tudo o que cabe ao ser humano, tudo o que faz parte da vida humana precisa ser terceirizado, entregue para alguém, para alguma máquina ou para alguma substância fazer, então o que sobra?

Para que servirá o homem?

Para produzir e consumir, apenas?

A superespecialização pode ter levado o humano a grande limitação, mecanizando-o e fazendo-o perder iniciativa, atitude, independência, capacidade, habilidade, naturalidade?

Geralmente, a desculpa é a falta de tempo por se ter que cuidar da carreira, da fama, do dinheiro, dos compromissos, dos afazeres e não sobra tempo para cuidar do resto.

O principal da vida ficou relegado a resto e sobra e foi entregue aos cuidados de outras pessoas, entidades, substâncias. E o que era para ser resto e sobra tornou-se o principal.


Este não é um discurso moralista, maniqueísta, que quer estabelecer o que é certo e errado ou o que as pessoas precisam fazer para serem felizes. Nada disso, não tenho interesse em influenciar vidas nem em dizer para as pessoas como elas devem viver.

O que exponho aqui é apenas reflexão pessoal, se servir a alguém, se ajudar, muito bem, se não servir, tá bem também. Serve para mim.

Porque, ao escrever, faço algo que gosto muito de fazer, que me dá prazer, e ainda paro para pesar e refletir sobre a minha vida. Depois compartilho o resultado.

Para escrever sobre não ter tempo e terceirizar tarefas que são minhas, da minha vida, tive que arrumar tempo para isto, tive que me organizar, elencar prioridades, e isso só me faz bem.

Sei que as pessoas dormem tarde, acordam com despertador, cumprem horários puxados no trabalho, na faculdade e em casa e que precisam disso para sobreviver.

Mas também sei que muitas pessoas estão ficando doentes justamente por causa deste estilo de vida, entre outros fatores.

Eu também já vivi assim e conheço um exército de gente que vivia assim e descobriu novos caminhos, buscou alternativas, algumas porque já estavam doentes, outras porque queriam viver e não somente existir.

Se o estilo de vida não está fazendo bem, se o essencial da vida está sendo deixado de lado, então é preciso buscar alternativas.

E elas existem.


Nenhum comentário:

Postar um comentário