Se não
fosse para ser quem és e quem fostes, a vida não te teria criado, teria criado
outra coisa, outro alguém no teu lugar.
Talvez, só talvez, uma das
maiores causas do sofrimento esteja no desassossego de ter que ser, ou ter
sido, outro alguém.
Pensando sobre minha vida, parece
que vivi sempre na iminência de ser algo, sempre num porvir, num vir a ser.
Criança, “um ser em formação”,
vive na iminência de tornar-se adolescente.
O adolescente, na expectativa
de tornar-se jovem e o jovem, adulto.
O adulto, por sua vez, vive na
expectativa de tornar-se casado, solteira, patrão, santo, profissional, livre, pai,
respeitado, salva, reconhecida, valorizado, mãe, poderoso, rica, de sucesso,
famoso, avó, aposentado, morto...
É um desassossego que só pode
mesmo desaguar em patologias, principalmente porque tem um agravante.
Além da emergente expectativa
própria, há o bombardeio das expectativas alheias, aí não tem quem suporte,
mesmo.
Ao que me parece, não sei o
que você pensa sobre isso, os pais criam expectativas em relação aos filhos,
desde que nascem, para todo o sempre.
Os filhos criam expectativas em
relação aos pais, mas, estes, pelo menos chega um momento em que desistem de
alimentá-las e mantê-las, assim que descobrem que pai e mãe são nada mais que
humanos falhos.
E desistem.
Apontarão agora suas
metralhadoras de expectativas para a cabeça das esposas, dos maridos e dos seus
próprios filhos. Para sempre.
Ele cria expectativas em
relação e ela e ela cria expectativas em relação a ele. Quando isso acontece, com
o passar do tempo, as expectativas não se cumprem, é claro, pois é uma criação
pessoal, e então o relacionamento vira um inferno.
Ou não.
Ou o outro corresponde às
expectativas, o que é ainda pior, pois um criou e impôs sobre o outro o que ele
deveria ser. E o outro, por sua vez, cumpriu o protocolo, seguiu o programa,
representou seu papel, sua personagem.
Faça um exercício sincero
comigo.
Pense nas expectativas
próprias, aquelas que você criou em relação a você mesmo e à vida.
Agora pegue as expectativas que
o mundo colocou e coloca sobre você.
Somou tudo?
Qual é o resultado?
O resultado é o inferno.
É desassossego, exasperação,
ansiedade, um eterno vir a ser, vir a se tornar algo, sempre, como se nunca
fosse.
Este interminável vir a ser é
ilusão, é cão correndo atrás do próprio rabo.
Mas espera um pouco. Tem
alguma coisa errada aí.
Os outros criam expectativas sobre
mim e eu tenho que correr atrás para satisfazê-las?
Tem algo precisando de
in-versão aqui.
Que se danem as expectativas.
Sim, mesmo as dos pais e cônjuges
e filhos e seja lá de quem for.
Por quê?
Ora, porque quem cria as
expectativas em relação a mim são os outros, isso ocorre dentro do outro, eu
não tenho responsabilidade sobre isso, não diz respeito a mim, mas a eles
mesmos. Este é um problema deles, não meu.
E aquelas expectativas que eu crio
sobre mim mesmo é problema só meu, eu que dê um jeito nelas, sem envolver mais
ninguém.
E penso.
Por que a vida nos faria humanos
se fosse para sermos santos, deuses, demônios ou qualquer outra coisa que não
seja unicamente humanos?
Por que a natureza faria uma
laranjeira que vivesse querendo ser um abacateiro?
Por que uma onça quereria ser
um macaco?
Por que um leopardo quereria
ser um homem?
Na natureza há metamorfoses,
mas não há sofrimento de algo por querer ser outra coisa. As transformações
podem acontecer, mas podem não acontecer, e tudo bem.
Não me parece saudável viver nesta
constante consumição, neste constante vazio de ser, sempre esperando se tornar.
O que equivale a viver sem identidade,
sem ser sujeito.
E, pior, depois, mais tarde,
olhar para trás e se maltratar por não ter sido.
Por não ter sido o pai, a mãe,
o filho, a esposa, o profissional, o amigo, o irmão ou seja lá que diabo
esperassem que eu fosse.
Já olhei para trás e a dor me
consumia, porque fiz alguém sofrer, decepcionei, não dei conta, não fui o que
esperavam que eu fosse.
E além de carregar esta dor
dentro, há que se conviver com ela nos olhos, nas palavras e na vida dos
envolvidos.
E acabei por sentir culpa por
ter sido.
Isto é de uma crueldade incalculável,
que ninguém deveria impor a si mesmo nem aos outros.
Para quem acredita, conhece,
já estudou alguma filosofia ou espiritualidade sabe que um dos princípios dos
infernos é esta insaciedade, esta consumição de ter que, de querer que, de esperar
que, da iminência que nunca se satisfaz e que nunca acaba e nunca se cumpre.
Ao que me parece, alguém que
viva deste jeito só pode mesmo mergulhar na ansiedade, pelo incessante porvir,
ou na depressão, no niilismo, no vazio, pelo porvir que não se cumpriu.
Por que não basta ser quem é,
do jeito que é?
E se não basta ser quem é, do
jeitinho que é, em que espécie de coisa nos tornamos?
Porque se não fosse para ser
quem é, teria sido diferente.
Se fosse para ser de qualquer
outro jeito, não seria quem é, a vida teria tratado de fazer diferente.
E, ao olhar para o passado, tento
me livrar do pesar e da culpa por não ter sido o que esperavam que eu fosse nem
o que eu mesmo esperava que eu fosse.
Fui exatamente quem deveria e
quem podia ser. Mesmo que eu mesmo não goste disso, não importa o meu gostar.
Foi o que foi. É o que é.
E, agora, a única coisa que
devo ser, que me interessa ser, é o que fui criado pra ser: humano. Com tudo o
que implica ser humano. Com as falhas, as limitações, os erros, os acertos, as
incertezas e inseguranças, as forças e belezas.
Sim, as belezas, porque é neste
caos humano, nas incongruências, nos paradoxos, nas contradições que reside a
grande beleza da criação. Já que não creio que ela seja um erro ou tenha se
dado por engano.
Mas a metamorfose, sempre.
E as expectativas?
Fodam-se as expectativas.
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