Um é dois, diferente para cada um.
Há poucos dias Alice foi
visitar Sérgio, ficou lá por cerca de 2 horas e almoçaram juntos. Foram casados
por cerca de 5 anos e estão separados há mais de 20, uma separação conflituosa.
Para Sérgio, aquela era uma visita desagradável, que ele
preferia não ter que receber, mas como a casa não era sua, não teve como negar.
Sérgio apenas suportou, com sentimento de asco, mas tratou Alice com educação,
ainda que desejasse o contrário. Ficou aliviado com o fim da visita e a saída
de Alice.
Sérgio entende que se no mundo
há mais de 7 bilhões de habitantes e bastante espaço, ninguém precisa estar com
quem não gosta, com quem não lhe faz bem, com quem lhe causa repulsa. Não vê
necessidade de aproximação ou de trabalhar resgates de relacionamentos
saturados, que já adoeceram e morreram.
Para Alice, foi um encontro de
resgate e de perdão, como ela mesma relatou a um amigo pouco depois de sair de
lá. Entendeu a postura de Sérgio como de constrangimento diante da força de seu
olhar e da sua presença e não de repulsa. Leu o semblante de Sérgio como de
sofrimento pelas dificuldades que havia passado e não como asco. Saiu feliz e satisfeita
com a visita, à qual atribuiu leveza por causa de uma seção místico-psíquica
que havia realizado com um terapeuta, há algum tempo, a centenas de quilômetros
dali.
Talvez um destes dois insista
em dizer que a sua versão é a verdade. Talvez alguém diga que cada um tem a sua
verdade e outro ainda afirme que entre uma e outra há uma verdade absoluta e
independente da interpretação que cada um possa fazer.
Opiniões, apenas isso:
opiniões.
Leituras, são só leituras.
Um evento que envolveu duas
pessoas e cada uma fez a sua leitura, de forma que pudesse se sentir bem e que
pudesse acomodar a situação em si da melhor forma, ou da forma que lhe foi
possível. E foi assim porque não poderia ter sido diferente, tudo ocorreu
dentro das condições de cada ator.
Leituras, é isso o que
fazemos, dentro da condição que temos fazemos leitura das situações, das
pessoas, do mundo, da vida e de nós mesmos, da forma mais conveniente possível
para nós.
Há duas expressões já muito
gastas que prefiro não utilizar: “com certeza” e “na verdade”. Não gosto nem de
uma nem de outra, mas elas vêm sendo utilizadas à exaustão faz algum tempo, ao
ponto de saturação. São indicativas de que seres humanos necessitam pensar em termos
de certezas e verdades. Minha leitura pessoal.
Algumas vezes posso aceitar
que é a minha verdade e não a do outro. Mas ainda assim tenho a inclinação de querer
que ela seja assumida pelos demais, que seja a verdade predominante. Outras
vezes posso querer impor minha verdade aos outros. Sendo que nem sequer ela
existe, apenas a leitura feita em um dado momento por um certo indivíduo.
Fiquei surpreso quando aprendi
que nem o que vejo diante dos meus olhos é a verdade. Se vejo uma árvore não
estou vendo uma árvore, não estou recebendo a verdade daquela árvore, a sua
integralidade, estou apenas recebendo luz refletida nela. Meus olhos inclusive
a recebem em um sentido, de cabeça para baixo, por exemplo, e meu cérebro é que
vira, que interpreta, que faz a leitura de uma forma que me seja possível
entender aquilo, aquela luz que me chega, não a árvore.
Talvez meu tato, paladar,
olfato e minha audição se aproximem mais da verdade da árvore do que a minha
visão. No entanto, confio muito mais no que vejo, sou escravo da visão,
supervalorizo este sentido em detrimento
dos outros, e de outros.
Este é um aspecto da morte da
verdade: ela não existe como valor absoluto.
Mas alguém poderia argumentar
que existe sim, que a leitura que cada um faz é a sua verdade. Ainda assim é apenas
uma leitura possível, pois para uma mesma pessoa outras leituras são possíveis,
até mesmo contrárias àquela feita anteriormente.
Não há verdade imutável, mas
relativa. Em outro momento, em outra situação, com outros sentimentos e
informações tanto Alice como Sérgio leriam o mesmo evento de forma totalmente
diferente e a verdade deles seria outra.
Ora, mas há realidades que são
verdades imutáveis, uma rocha é uma rocha, é dura e não se move. Não, não
necessariamente, depende em relação a que, depende de qual ponto de vista se lê.
Uma rocha se move o tempo
todo, pois é feita de átomos e não existe átomo parado em condições naturais.
Ela não se move aos nossos olhos, para a percepção dos nossos sentidos, mas em
si está se movendo.
E ela não é maciça e dura, é
uma renda, cheia de espaços vazios por onde é possível atravessar. Assim como
nosso corpo ou uma chapa de aço. Para vermos assim bastaria que diminuíssemos
bastante de tamanho. Então nosso corpo é sólido, a chapa de aço e a rocha
também, mas para nós, para nossos olhos, para nosso tamanho. Se fôssemos do tamanho de uma
bactéria veríamos nosso corpo como vemos as estrelas no céu, a via láctea.
Leituras possíveis de acordo
com o ponto de vista.
A segunda morte da verdade.
A humanidade já teve inúmeras
certezas e verdades que, com o tempo e a ciência, se mostraram verdadeiros
absurdos. Nada garante que não estejamos repetindo o mesmo erro.
Porém há outro aspecto da
morte da verdade, típico da pós-modernidade.
Talvez estejamos vivendo um
momento de instabilidade, de transição entre uma humanidade que acreditava em
verdades absolutas e uma humanidade que sabe que elas não existem, que aprendeu
a viver com inconstâncias e incertezas, que sabe que tudo é apenas leitura,
instável, fútil e transitória, ainda que dure mil anos.
Refiro-me ao extremismo
próprio deste momento de transição. Em que a humanidade começa a entender que
cada um tem a sua verdade, que ela deve ser respeitada, mas que também pode
mudar a qualquer momento, é relativa e não absoluta.
Soma-se a isso a possibilidade
de manifestar-se e de compartilhar essas leituras, como verdades próprias, para
milhares de pessoas em todo o mundo.
Uma criança que não sabe o que
fazer direito com o brinquedo novo tão evoluído.
Então temos um fato histórico
comprovado cientificamente, por exemplo, a viagem de Cristóvão Colombo e sua
chegada ao continente americano.
As leituras daqueles eventos
mudam e podem ser extremamente diferentes. Múltiplas interpretações sobre as
viagens e descobertas de Colombo, ou de Cabral, são possíveis, mas negar integralmente
a existência de que algo deste tipo aconteceu é uma postura extrema e uma
escolha individual temerosa.
Assim como é extremo e
temeroso alguém afirmar, no século XXI, que a terra é um disco plano e dizer
que isto é verdade porque é a sua verdade e tem o direito de fazer tal
afirmação.
OK. Está certo. A pessoa tem
todo o direito de crer nisso sem ser internada por uma patologia psíquica. Talvez
possa afirmar também que holocausto nunca existiu, que nenhum judeu foi morto,
que no mundo nunca houve escravidão.
Comportamento típico de quem está
aprendendo a lidar com a liberdade de fazer leituras e escolhas, mas não está
sabendo lidar muito bem com isso. Descobrimos recentemente que podemos escolher
em que acreditar, que somos nós que escolhemos o que é verdade, conforme for
mais conveniente para nós, independente do que existe no mundo.
Mas ao experimentar este novo
mundo, além de aprender a fazer escolhas, humanos tendem a forçar a barra para
impor suas escolha e interpretação aos outros e demonizam todo aquele que não
compartilha da mesma visão, que discorda.
É neste estágio que estamos.
Aprendendo a lidar com a liberdade de escolher nossas verdades, ainda em
desequilíbrio, indo para extremos, desafiando as possibilidades, cambaleante
como criança aprendendo a caminhar.
E, como crianças, estamos
experimentando os limites, algumas vezes abraçando absurdos.
Por isso se tem observado ultimamente comportamentos anti-ciência, parece que se pode ignorá-la, que não precisamos mais dela nem do arcabouço que produziu até agora, pois fazemos escolhas, escolhemos nossas próprias verdades, escolhemos nossas crenças, fabricamos nossas verdades e nossas próprias interpretações, já sabemos andar sozinhos.
É claro que alguns
espertalhões já perceberam este momento e estão se aproveitando da ignorância,
do automatismo, da má fé de alguns, da ganância, da insegurança e principalmente do medo.
Por isso se estabeleceu uma
guerra, não entre verdades, não entre armas, não entre ciências, não entre
argumentos ou ideologias, mas entre narrativas, pois o que importa no momento
são as narrativas.
A narrativa vencedora é aquela
que faz maior séquito, que converte mais, que faz mais crentes, e é isso que proporciona
poder, domínio e riqueza aos narradores.
Seus seguidores, dependentes
da humana necessidade de verdade, certeza e de conveniência para se sentirem
bem, escolhem crer em uma versão, em uma leitura, estabelecendo-a como verdade,
independente de quão absurda ela possa ser.
É a criança ainda insegura,
que está aprendendo a andar, testando limites e possibilidades, agarrando-se no
que for mais conveniente com medo de cair. Estamos no período de transição entre
engatinhar e andar com as próprias pernas. Por isso às vezes nos jogamos no chão
e voltamos a engatinhar.
O risco de cair existe, é iminente,
podemos ser enganados, trapaceados, doutrinados, podemos fazer escolhas
equivocadas, tropeçar e desabar escada abaixo, quebrando o próprio pescoço e o de
outros.
A criança tem a proteção e
ajuda dos pais, no nosso caso, neste período de transição pós-moderna, estamos
no meio de pessoas muito más, inescrupulosas, frias, insensíveis.
É bom ficar atento e tomar
cuidado com as leituras. Procurar olhar para todos os lados, prestar atenção,
não assumir verdades nem certezas de fora impulsiva e imediata só porque parece
ser conveniente aos nossos propósitos mais prementes.
É bom aprender o mais rápido
possível a conviver com insegurança, com o transitório, com a distância do
chão, com a falta de alguém a nos carregar, a nos dirigir, a nos levar pela
mão.
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