sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

A MORTE DA VERDADE (não li o livro de Michiko Kakutani e este artigo não é baseado nele)



Um é dois, diferente para cada um.



Há poucos dias Alice foi visitar Sérgio, ficou lá por cerca de 2 horas e almoçaram juntos. Foram casados por cerca de 5 anos e estão separados há mais de 20, uma separação conflituosa.

Para Sérgio,  aquela era uma visita desagradável, que ele preferia não ter que receber, mas como a casa não era sua, não teve como negar. Sérgio apenas suportou, com sentimento de asco, mas tratou Alice com educação, ainda que desejasse o contrário. Ficou aliviado com o fim da visita e a saída de Alice.

Sérgio entende que se no mundo há mais de 7 bilhões de habitantes e bastante espaço, ninguém precisa estar com quem não gosta, com quem não lhe faz bem, com quem lhe causa repulsa. Não vê necessidade de aproximação ou de trabalhar resgates de relacionamentos saturados, que já adoeceram e morreram.

Para Alice, foi um encontro de resgate e de perdão, como ela mesma relatou a um amigo pouco depois de sair de lá. Entendeu a postura de Sérgio como de constrangimento diante da força de seu olhar e da sua presença e não de repulsa. Leu o semblante de Sérgio como de sofrimento pelas dificuldades que havia passado e não como asco. Saiu feliz e satisfeita com a visita, à qual atribuiu leveza por causa de uma seção místico-psíquica que havia realizado com um terapeuta, há algum tempo, a centenas de quilômetros dali.
Talvez um destes dois insista em dizer que a sua versão é a verdade. Talvez alguém diga que cada um tem a sua verdade e outro ainda afirme que entre uma e outra há uma verdade absoluta e independente da interpretação que cada um possa fazer.
Opiniões, apenas isso: opiniões.

Leituras, são só leituras.


Um evento que envolveu duas pessoas e cada uma fez a sua leitura, de forma que pudesse se sentir bem e que pudesse acomodar a situação em si da melhor forma, ou da forma que lhe foi possível. E foi assim porque não poderia ter sido diferente, tudo ocorreu dentro das condições de cada ator.

Leituras, é isso o que fazemos, dentro da condição que temos fazemos leitura das situações, das pessoas, do mundo, da vida e de nós mesmos, da forma mais conveniente possível para nós.

Há duas expressões já muito gastas que prefiro não utilizar: “com certeza” e “na verdade”. Não gosto nem de uma nem de outra, mas elas vêm sendo utilizadas à exaustão faz algum tempo, ao ponto de saturação. São indicativas de que seres humanos necessitam pensar em termos de certezas e verdades. Minha leitura pessoal.

Algumas vezes posso aceitar que é a minha verdade e não a do outro. Mas ainda assim tenho a inclinação de querer que ela seja assumida pelos demais, que seja a verdade predominante. Outras vezes posso querer impor minha verdade aos outros. Sendo que nem sequer ela existe, apenas a leitura feita em um dado momento por um certo indivíduo.

Fiquei surpreso quando aprendi que nem o que vejo diante dos meus olhos é a verdade. Se vejo uma árvore não estou vendo uma árvore, não estou recebendo a verdade daquela árvore, a sua integralidade, estou apenas recebendo luz refletida nela. Meus olhos inclusive a recebem em um sentido, de cabeça para baixo, por exemplo, e meu cérebro é que vira, que interpreta, que faz a leitura de uma forma que me seja possível entender aquilo, aquela luz que me chega, não a árvore.

Talvez meu tato, paladar, olfato e minha audição se aproximem mais da verdade da árvore do que a minha visão. No entanto, confio muito mais no que vejo, sou escravo da visão, supervalorizo este  sentido em detrimento dos outros, e de outros.

Este é um aspecto da morte da verdade: ela não existe como valor absoluto.
Mas alguém poderia argumentar que existe sim, que a leitura que cada um faz é a sua verdade. Ainda assim é apenas uma leitura possível, pois para uma mesma pessoa outras leituras são possíveis, até mesmo contrárias àquela feita anteriormente.

Não há verdade imutável, mas relativa. Em outro momento, em outra situação, com outros sentimentos e informações tanto Alice como Sérgio leriam o mesmo evento de forma totalmente diferente e a verdade deles seria outra.

Ora, mas há realidades que são verdades imutáveis, uma rocha é uma rocha, é dura e não se move. Não, não necessariamente, depende em relação a que, depende de qual ponto de vista se lê.

Uma rocha se move o tempo todo, pois é feita de átomos e não existe átomo parado em condições naturais. Ela não se move aos nossos olhos, para a percepção dos nossos sentidos, mas em si está se movendo.

E ela não é maciça e dura, é uma renda, cheia de espaços vazios por onde é possível atravessar. Assim como nosso corpo ou uma chapa de aço. Para vermos assim bastaria que diminuíssemos bastante de tamanho. Então nosso corpo é sólido, a chapa de aço e a rocha também, mas para nós, para nossos olhos, para nosso tamanho. Se fôssemos do tamanho de uma bactéria veríamos nosso corpo como vemos as estrelas no céu, a via láctea.

Leituras possíveis de acordo com o ponto de vista.

A segunda morte da verdade.


A humanidade já teve inúmeras certezas e verdades que, com o tempo e a ciência, se mostraram verdadeiros absurdos. Nada garante que não estejamos repetindo o mesmo erro.

Porém há outro aspecto da morte da verdade, típico da pós-modernidade.
Talvez estejamos vivendo um momento de instabilidade, de transição entre uma humanidade que acreditava em verdades absolutas e uma humanidade que sabe que elas não existem, que aprendeu a viver com inconstâncias e incertezas, que sabe que tudo é apenas leitura, instável, fútil e transitória, ainda que dure mil anos.

Refiro-me ao extremismo próprio deste momento de transição. Em que a humanidade começa a entender que cada um tem a sua verdade, que ela deve ser respeitada, mas que também pode mudar a qualquer momento, é relativa e não absoluta.

Soma-se a isso a possibilidade de manifestar-se e de compartilhar essas leituras, como verdades próprias, para milhares de pessoas em todo o mundo.
Uma criança que não sabe o que fazer direito com o brinquedo novo tão evoluído.

Então temos um fato histórico comprovado cientificamente, por exemplo, a viagem de Cristóvão Colombo e sua chegada ao continente americano.
As leituras daqueles eventos mudam e podem ser extremamente diferentes. Múltiplas interpretações sobre as viagens e descobertas de Colombo, ou de Cabral, são possíveis, mas negar integralmente a existência de que algo deste tipo aconteceu é uma postura extrema e uma escolha individual temerosa.

Assim como é extremo e temeroso alguém afirmar, no século XXI, que a terra é um disco plano e dizer que isto é verdade porque é a sua verdade e tem o direito de fazer tal afirmação.

OK. Está certo. A pessoa tem todo o direito de crer nisso sem ser internada por uma patologia psíquica. Talvez possa afirmar também que holocausto nunca existiu, que nenhum judeu foi morto, que no mundo nunca houve escravidão.

Comportamento típico de quem está aprendendo a lidar com a liberdade de fazer leituras e escolhas, mas não está sabendo lidar muito bem com isso. Descobrimos recentemente que podemos escolher em que acreditar, que somos nós que escolhemos o que é verdade, conforme for mais conveniente para nós, independente do que existe no mundo.

Mas ao experimentar este novo mundo, além de aprender a fazer escolhas, humanos tendem a forçar a barra para impor suas escolha e interpretação aos outros e demonizam todo aquele que não compartilha da mesma visão, que discorda.  

É neste estágio que estamos. Aprendendo a lidar com a liberdade de escolher nossas verdades, ainda em desequilíbrio, indo para extremos, desafiando as possibilidades, cambaleante como criança aprendendo a caminhar.
E, como crianças, estamos experimentando os limites, algumas vezes abraçando absurdos. 

Por isso se tem observado ultimamente comportamentos anti-ciência, parece que se pode ignorá-la, que não precisamos mais dela nem do arcabouço que produziu até agora, pois fazemos escolhas, escolhemos nossas próprias verdades, escolhemos nossas crenças, fabricamos nossas verdades e nossas próprias interpretações, já sabemos andar sozinhos.

É claro que alguns espertalhões já perceberam este momento e estão se aproveitando da ignorância, do automatismo, da má fé de alguns, da ganância, da insegurança e principalmente do medo.

Por isso se estabeleceu uma guerra, não entre verdades, não entre armas, não entre ciências, não entre argumentos ou ideologias, mas entre narrativas, pois o que importa no momento são as narrativas.

A narrativa vencedora é aquela que faz maior séquito, que converte mais, que faz mais crentes, e é isso que proporciona poder, domínio e riqueza aos narradores.

Seus seguidores, dependentes da humana necessidade de verdade, certeza e de conveniência para se sentirem bem, escolhem crer em uma versão, em uma leitura, estabelecendo-a como verdade, independente de quão absurda ela possa ser.

É a criança ainda insegura, que está aprendendo a andar, testando limites e possibilidades, agarrando-se no que for mais conveniente com medo de cair. Estamos no período de transição entre engatinhar e andar com as próprias pernas. Por isso às vezes nos jogamos no chão e voltamos a engatinhar.

O risco de cair existe, é iminente, podemos ser enganados, trapaceados, doutrinados, podemos fazer escolhas equivocadas, tropeçar e desabar escada abaixo, quebrando o próprio pescoço e o de outros.

A criança tem a proteção e ajuda dos pais, no nosso caso, neste período de transição pós-moderna, estamos no meio de pessoas muito más, inescrupulosas, frias, insensíveis.

É bom ficar atento e tomar cuidado com as leituras. Procurar olhar para todos os lados, prestar atenção, não assumir verdades nem certezas de fora impulsiva e imediata só porque parece ser conveniente aos nossos propósitos mais prementes.

É bom aprender o mais rápido possível a conviver com insegurança, com o transitório, com a distância do chão, com a falta de alguém a nos carregar, a nos dirigir, a nos levar pela mão.

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