domingo, 19 de janeiro de 2020

O FARELO DE BOLO, O AVIÃO E O CALABOUÇO



Quanto mais eu aprendo, menos eu sei




O meu pensamento inicial sobre saber e não saber seguia uma lógica que com o tempo mostrou-se ilusória. A lógica era bem simples: se eu leio eu aprendo e, portanto, se eu aprendo eu sei, tenho conhecimento.

E eu aplicava este modelo para quase tudo. Se eu estudo eu aprendo e, portanto, agora sei. Se eu viajo, vou até o lugar e vejo, experimento, portanto eu passo a conhecê-lo.

Só que não...
Não é bem assim.

Com o passar dos anos, com os estudos, com as leituras e viagens fui percebendo que havia algo errado com este modelo, ele não estava funcionando.

Em princípio pensei que eu devia ser tão idiota que era incapaz de aprender, por isso quanto mais eu estudava e lia, mais burro eu me sentia, quanto mais viajava, mais desconhecedor eu me sentia. Eu me sentia cada vez menor ao invés de me sentir maior, eu tinha a sensação de que sabia menos e não mais.

Então lembrei de “O enigma de Kaspar Hauser”.

Um filme alemão antigo, de 1974, dirigido por Werner Herzog. O filme conta a história de um jovem que foi mantido isolado em um calabouço desde que nasceu, sem nunca ter contato com pessoas nem com o mundo. Ele não desenvolveu linguagem e não sabia o que existia além daquele calabouço, não sabia como era o mundo. Seu mundo estava ali, dentro daquelas quatro paredes de pedra.

Portanto, naquelas condições, aquele jovem apenas conhecia o que existia na frente de seus olhos, ele não fazia ideia do que ignorava, não fazia ideia de que existia algo mais. Quando o encontraram e o retiraram dali, levaram-no para uma cidade grande para tentar civilizá-lo e então ele conheceu o mundo. Ou melhor, ele tomou consciência de que existia um vasto mundo a ser conhecido, tornou-se consciente do que ignorava, do que desconhecia.

E assim entendi que eu estava enganado quando eu aprendia ou ia nos lugares e acomodava em mim a convicção de que sabia. Não, eu tomava consciência do que ignorava, do que não sabia e do que havia ainda por ser conhecido, visto, vivido e aprendido.


Quanto mais eu rodava o mundo, menor eu me tornava e tornava-me consciente de que conhecia pouco, porque tomava consciência do tamanhão do mundo.

Quanto mais aprendo, mais sei que não sei nada diante do tamanhão dos mistérios da vida e das ciências.

Quando vejo um avião passando lá no céu ele me parece pequeno e simples, apenas um objeto voando, um brilho prateado no azul. Mas quando vou ao aeroporto e chego perto de um, vejo que ele é enorme e de grande complexidade, que tem uma infinidade de coisas que desconheço, então torno-me consciente muito mais do que ignoro em um avião do que conheço dele.

Eu tinha muita vontade de conhecer o deserto, que me parecia, de longe, ser algo simples, só a monotonia da terra seca e quente. Mas quando eu estive lá tomei consciência do seu tamanho, complexidade, multiplicidade e da imensidão a ser conhecida, aí é que fui saber o que eu ignorava em um deserto.

Só quando passei pelo curso de Letras na Universidade foi que tomei consciência do quanto eu não sabia sobre linguagem, literatura e o mundo da escrita. E quanto mais entro neste território, maior ele fica, menos eu sei, mais eu sei que ignoro.

 Assim, quanto mais conheço mais aumenta a parte que desconheço, pois tomo consciência dela. Quase posso dizer que aprender é emburrecer.
Se o jovem Kaspar Hauser não tivesse saído para o mundo não saberia o tamanho que ele tem e o quanto ignorava dele. Supondo que ao ver o mundo, ao aprender algumas coisas novas, com falar, ele olhasse apenas para o conhecimento adquirido, convencendo-se dele, fixando verdades, então estaria tragicamente se lançando novamente ao calabouço. Mas desta vez ao calabouço da sua própria mente, do seu convencimento, da sua ilusão de conhecimento e da cegueira proposital sobre o que ainda ignora, que é praticamente tudo.



Compreendi que se fecho minha visão sobre o que acho que sei, deixando de fora a consciência de tudo o que ignoro, então estarei reduzindo o mundo ao meu tamanho, ao tamanho do que conheço, o que é bem pouco, bem pequeno e bem simples.   

Se me aproximo do avião sei mais dele do que sabia ao vê-lo passando no céu? Não, sei que ignoro mais dele do que ignorava ao vê-lo passando no céu.

Se saio da minha casa, da minha cidade, para viajar pelo mundo, conheço mais dele? Não, sei que ignoro mais dele do que ignorava antes de percorrê-lo.

Então conhecer e encher-se de respostas? Não, conhecer é encher-se de perguntas.

Então o que acontecia comigo quando eu lia, estudava, viajava e achava que estava me enchendo de conhecimento? Acontecia que eu estava fixando meu olhar, minha atenção, apenas no adquirido, como se o recortasse e isolasse do restante da realidade. A fatia me saciava e eu esquecia que ela saiu de um bolo enorme ainda desconhecido para mim.

E minha postura passava a ser lamentavelmente a de alguém que conhece, e infelizmente que acha que conhece mais que outros. Então eu queria orgulhosamente expor minha sabedoria, dar a minha opinião, pois achava que ela era importante para os outros, mesmo que não soubessem disso nem a tivessem solicitado.


Claro que olhando para aquela minúscula fatia como se fosse o bolo todo, eu realmente era um sábio. Porém olhando para o enorme bolo de onde experimentei um minúsculo farelo, eu era um grande ignorante. E é isso que sou, embora não raro já tenha chamado alguém de burro, pelo menos em pensamento, infelizmente. Mas agora entendo que esta atitude testemunha sobre mim, mostra a minha realidade, não a dele.

Vergonhosamente cheguei a pensar mesmo que eu estava me tornando um sábio, uma pessoa que conhecia a verdade e que talvez fosse mesmo superior a outros. Mas quando aprendo algo, quanto viajo a algum lugar, consigo ver então o quanto não sei, o quanto não conheço, o quanto tenho a aprender, o quanto sou ignorante.

A primeira postura não foi tomada à toa, ela me tornava grande e seguro, fazia eu esquecer da minha pequenez e vulnerabilidade. A segunda postura, ao contrário, torna-me pequeno diante do mundo, da vida e de seus mistérios. Sinto-me até mesmo incapaz e vulnerável, mas me parece mais realista, parece mais a minha cara.

Claro que se eu olhasse para aquele farelo adquirido e ainda o aumentasse um pouco, esquecendo de onde ele saiu, realmente eu era um gigante poderoso que comeu todo o bolo, que o absorveu integralmente. Assim como de longe pareço maior do que um avião, o que não é verdade.  

Quando olho para o farelo que adquiri, em comparação com o bolo todo, não sou nada e tenho tudo para aprender e conhecer. Assim não caio na ilusão desastrosa de me achar sábio, conhecedor, melhor ou maior do que outro alguém. Assim não reduzo o mundo ao meu tamanho, enxergo-me pequeno nele, ignorante dele, com tudo para aprender.



Este é um exercício que faço, um treinamento, nem sempre com sucesso.





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