Você lembra que lá na escola os
professores de Português e Redação ensinavam a produzir textos dissertativos?
E não foi em um ano só, não. Durante
toda a sua vida escolar este tipo de texto apareceu em quase todos os anos e
séries.
Lembra que explicaram que este tipo de texto é
o que trata de argumentos, de ideias e opiniões, de pontos de vista, de análise
e de crítica?
Lembra o quanto ensinavam e
exercitavam a produção e a interpretação deste tipo de texto? Chegava a enjoar,
não é mesmo?
Talvez isso ocorra porque
geralmente este é o tipo de texto que é mais solicitado nas provas do ENEM,
vestibulares e concursos. Ou talvez seja por tradição escolar e outros motivos.
Mas o fato é que é bem menos
frequente solicitarem e orientarem a criação de textos narrativos, ensinando a
criá-los com todos os seus elementos. Também não era, e não é, muito comum
fazerem exercício de interpretação de narrativas, como um conto ou uma fábula,
por exemplo.
Embora nenhum tipo de texto
seja puro, mas são classificados segundo a predominância, tenho a impressão de
que a dissertação tem lugar privilegiado no meio acadêmico em relação à narração.
Entretanto, olhando para o
contexto social, pragmático, do passado e contemporâneo, é possível identificar
uma guerra, uma disputa quase constante e por vezes bem acirrada entre
narrativas.
São narrativas tentando
prevalecer sobre as outras, dominar o enredo social, atrair mais simpatizantes,
elegendo-se como prediletas e dominantes.
A disputa entre religiões pode
ser vista como uma disputa entre narrativas, pois é a história contada que
convence ou não convence. Os livros sagrados são basicamente compostos de narrativas,
que contam a saga de um deus, ou de deuses, e seus humanos escolhidos.
O embate entre criacionismo e
teoria da evolução, por exemplo, é uma disputa entre duas narrativas que contam
como o Universo e a vida teriam surgido. Cada qual quer ter a razão, quer ser
reconhecida como predominante, como verdade absoluta.
No campo político, a disputa
não tem sido outra, senão uma guerra entre narrativas no terreno das
ideologias. As ideologias tratam de ideias, porém são criadas narrativas, com
enredos simplistas, divididos em um lado do bem e um lado do mal, com bandidos
e mocinhos, que dominam a cena.
Cada narrador coloca-se e
coloca os seus personagens no papel de mocinho que luta contra o mal, que
logicamente é o seu adversário. Cada narrativa domina, seduz uma quantidade de
simpatizantes, apoiadores, crentes ou seguidores, o que serve de medida de
força, dominação, controle, prevalência.
Isto é bem nítido no campo da
religião e da política. Pode prestar atenção que você vai comprovar.
Quem não está habituado com
narrativas, quem não sabe como lidar com elas, quem não aprendeu como elas são
compostas, quais são seus elementos, suas estratégias, como se faz a análise de
narrativas, acaba ficando exposto e vulnerável. Presa fácil é quem toma partido
de uma narrativa, quem é convencido por ela, tomando-a como verdade absoluta.
Nenhuma narrativa é uma verdade absoluta. Nenhuma.
Este tipo de acontecimento já
provocou desastres na humanidade. Aliás, arrisco-me a dizer que os maiores
desastres que a humanidade já viveu foram provocados por narrativas que
convenceram incautos sem nenhum senso crítico ou capacidade de leitura. Narrativas
que arrastaram pessoas para o caos.
Ou não foi uma narrativa bem
contada por Jim Jones, da Igreja Cristã do Evangelho Pleno, que provocou o suicídio
em massa e a morte de 918 seguidores, em 1978, nos Estados Unidos?
Mas as narrativas, por mais persuasivas
que sejam, podem ser completamente ficcionais. Ainda que sejam verossímeis,
podem conter partes da realidade ou elementos verídicos, podem privilegiar um
ponto de vista em detrimento de outro, podem utilizar-se de recortes
históricos, de intertextualidade, para aumentar seu poder de convencimento. E
ainda assim serem apenas narrativa ficcional.
Enquanto um texto dissertativo
tem o argumento e o convencimento como elementos constitutivos, ou seja,
elementos que o caracterizam, e por isso são claramente identificáveis, a
narrativa tem estes elementos de forma subliminar.
Nas narrativas, a ideologia,
os mecanismos de convencimentos, as argumentações residem nas entrelinhas, nas
inferências, nas relações semânticas, no diálogo com a realidade e com o
interior do leitor.
A ascensão de Hitler e do
Nazismo se deu sobre uma narrativa construída. A narrativa dizia que o alemão
era um homem especial, uma raça superior, que precisava se livrar e se proteger
da miscigenação para criar uma raça pura.
A narrativa nazista contava
que o povo alemão estava contaminado com o mal, que eram os judeus, que tinham grande
poder econômico e estavam sugando a pátria alemã, explorando o povo alemão,
empobrecendo o país. Eles precisavam ser eliminados antes que dominassem tudo e
todos e descaracterizassem a Alemanha. A narrativa nazista dizia ainda que haviam
outros personagens do mal que precisavam ser extintos para o bem da Alemanha e
do povo alemão, como homossexuais, ciganos, testemunhos de jeová, etc.
A história foi muito bem contada
por um homem que nem era alemão, era austríaco: Adolf Hitler. Provavelmente não
foi criada apenas por ele, mas foi identificado nele o narrador, o contador
ideal.
E todos os elementos necessários
estavam ali, o inimigo trazendo o caos, verossimilhança (podia ser que houvesse
mesmo uma crise econômica, e quando não há, basta criar uma), o elemento “medo”
e o mocinho, o herói, que aparece com a solução e salva a princesa.
Além disso, tem todo o trabalho
de marketing para promoção da novela, para criação de medo e forte companha
contra os vilões.
Esta narrativa foi comprada pela
maioria dos alemães, foi tragicamente aceita sem questionamentos, e o resultado
disso todos sabemos qual foi.
Sem a construção de uma boa
narrativa e sem fazê-la predominar sobre todas as outras, a tragédia não teria
sido possível.
No final, a princesa nem era
princesa, os bandidos não eram tão bandidos nem os mocinhos tão mocinhos.
As pessoas não entenderam que
se tratava de uma narrativa e entenderam menos ainda que a narrativa era
ficcional. Não sabiam que não existe narrativa pura, que em todas elas há
veiculação de ideias, há argumentos, convencimento, elementos da dissertação,
assim como da descrição. Não sabiam que nenhuma narrativa é verdade absoluta,
infelizmente.
Um inquérito, por exemplo,
busca montar uma narrativa, inclusive com reconstituição de ações para nela se espelhar.
A criança que está com medo do pai, da mãe ou da professora cria uma narrativa
que a proteja das possíveis consequências da verdade.
Um conto, um romance, uma
novela, uma crônica, uma fábula, uma notícia, uma biografia são alguns exemplos
de narrativas.
Ler, estudar, entender, habituar-se com a sua estrutura, criar
familiaridade com suas dinâmicas, saber quais são os elementos que fazem parte
de uma narrativa é de suma importância para ter a capacidade de lidar com o
bombardeio de narrativas que nos tentam cooptar diariamente, cooptar nossa
mente, nossas emoções, nossa vida.
Já percebeu que são as narrativas de sucesso que estão sendo usadas pelos bancos, pelas financeiras, pelos fabricantes de carros, pelas construtoras e corretoras, pelas grande companhias e por todo o mercado para convencer e atrair clientes? Veja como as propagandas são narrativas com elementos de sucesso, de aventura, de felicidade, de medo, de coragem, de conquista, de ousadia e de tantas coisas que todos querem.
Narrativas têm grande poder e para
não ser vítima delas é preciso ter capacidade de leitura. Saber ler profundamente.
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