domingo, 15 de dezembro de 2019

O PODER DA NARRATIVA




  
Você lembra que lá na escola os professores de Português e Redação ensinavam a produzir textos dissertativos?

E não foi em um ano só, não. Durante toda a sua vida escolar este tipo de texto apareceu em quase todos os anos e séries. 

 Lembra que explicaram que este tipo de texto é o que trata de argumentos, de ideias e opiniões, de pontos de vista, de análise e de crítica?

Lembra o quanto ensinavam e exercitavam a produção e a interpretação deste tipo de texto? Chegava a enjoar, não é mesmo?

Talvez isso ocorra porque geralmente este é o tipo de texto que é mais solicitado nas provas do ENEM, vestibulares e concursos. Ou talvez seja por tradição escolar e outros motivos.

Mas o fato é que é bem menos frequente solicitarem e orientarem a criação de textos narrativos, ensinando a criá-los com todos os seus elementos. Também não era, e não é, muito comum fazerem exercício de interpretação de narrativas, como um conto ou uma fábula, por exemplo.

Embora nenhum tipo de texto seja puro, mas são classificados segundo a predominância, tenho a impressão de que a dissertação tem lugar privilegiado no meio acadêmico em relação à narração.

Entretanto, olhando para o contexto social, pragmático, do passado e contemporâneo, é possível identificar uma guerra, uma disputa quase constante e por vezes bem acirrada entre narrativas.


São narrativas tentando prevalecer sobre as outras, dominar o enredo social, atrair mais simpatizantes, elegendo-se como prediletas e dominantes.

A disputa entre religiões pode ser vista como uma disputa entre narrativas, pois é a história contada que convence ou não convence. Os livros sagrados são basicamente compostos de narrativas, que contam a saga de um deus, ou de deuses, e seus humanos escolhidos.

O embate entre criacionismo e teoria da evolução, por exemplo, é uma disputa entre duas narrativas que contam como o Universo e a vida teriam surgido. Cada qual quer ter a razão, quer ser reconhecida como predominante, como verdade absoluta.  

No campo político, a disputa não tem sido outra, senão uma guerra entre narrativas no terreno das ideologias. As ideologias tratam de ideias, porém são criadas narrativas, com enredos simplistas, divididos em um lado do bem e um lado do mal, com bandidos e mocinhos, que dominam a cena.

Cada narrador coloca-se e coloca os seus personagens no papel de mocinho que luta contra o mal, que logicamente é o seu adversário. Cada narrativa domina, seduz uma quantidade de simpatizantes, apoiadores, crentes ou seguidores, o que serve de medida de força, dominação, controle, prevalência.

Isto é bem nítido no campo da religião e da política. Pode prestar atenção que você vai comprovar.

Quem não está habituado com narrativas, quem não sabe como lidar com elas, quem não aprendeu como elas são compostas, quais são seus elementos, suas estratégias, como se faz a análise de narrativas, acaba ficando exposto e vulnerável. Presa fácil é quem toma partido de uma narrativa, quem é convencido por ela, tomando-a como verdade absoluta.

Nenhuma narrativa é uma verdade absoluta. Nenhuma.



Este tipo de acontecimento já provocou desastres na humanidade. Aliás, arrisco-me a dizer que os maiores desastres que a humanidade já viveu foram provocados por narrativas que convenceram incautos sem nenhum senso crítico ou capacidade de leitura. Narrativas que arrastaram pessoas para o caos.

Ou não foi uma narrativa bem contada por Jim Jones, da Igreja Cristã do Evangelho Pleno, que provocou o suicídio em massa e a morte de 918 seguidores, em 1978, nos Estados Unidos?

Mas as narrativas, por mais persuasivas que sejam, podem ser completamente ficcionais. Ainda que sejam verossímeis, podem conter partes da realidade ou elementos verídicos, podem privilegiar um ponto de vista em detrimento de outro, podem utilizar-se de recortes históricos, de intertextualidade, para aumentar seu poder de convencimento. E ainda assim serem apenas narrativa ficcional.

Enquanto um texto dissertativo tem o argumento e o convencimento como elementos constitutivos, ou seja, elementos que o caracterizam, e por isso são claramente identificáveis, a narrativa tem estes elementos de forma subliminar. 

Nas narrativas, a ideologia, os mecanismos de convencimentos, as argumentações residem nas entrelinhas, nas inferências, nas relações semânticas, no diálogo com a realidade e com o interior do leitor.

A ascensão de Hitler e do Nazismo se deu sobre uma narrativa construída. A narrativa dizia que o alemão era um homem especial, uma raça superior, que precisava se livrar e se proteger da miscigenação para criar uma raça pura.
A narrativa nazista contava que o povo alemão estava contaminado com o mal, que eram os judeus, que tinham grande poder econômico e estavam sugando a pátria alemã, explorando o povo alemão, empobrecendo o país. Eles precisavam ser eliminados antes que dominassem tudo e todos e descaracterizassem a Alemanha. A narrativa nazista dizia ainda que haviam outros personagens do mal que precisavam ser extintos para o bem da Alemanha e do povo alemão, como homossexuais, ciganos, testemunhos de jeová, etc.


A história foi muito bem contada por um homem que nem era alemão, era austríaco: Adolf Hitler. Provavelmente não foi criada apenas por ele, mas foi identificado nele o narrador, o contador ideal.

E todos os elementos necessários estavam ali, o inimigo trazendo o caos, verossimilhança (podia ser que houvesse mesmo uma crise econômica, e quando não há, basta criar uma), o elemento “medo” e o mocinho, o herói, que aparece com a solução e salva a princesa.

Além disso, tem todo o trabalho de marketing para promoção da novela, para criação de medo e forte companha contra os vilões.

Esta narrativa foi comprada pela maioria dos alemães, foi tragicamente aceita sem questionamentos, e o resultado disso todos sabemos qual foi.

Sem a construção de uma boa narrativa e sem fazê-la predominar sobre todas as outras, a tragédia não teria sido possível.

No final, a princesa nem era princesa, os bandidos não eram tão bandidos nem os mocinhos tão mocinhos.

As pessoas não entenderam que se tratava de uma narrativa e entenderam menos ainda que a narrativa era ficcional. Não sabiam que não existe narrativa pura, que em todas elas há veiculação de ideias, há argumentos, convencimento, elementos da dissertação, assim como da descrição. Não sabiam que nenhuma narrativa é verdade absoluta, infelizmente.

Um inquérito, por exemplo, busca montar uma narrativa, inclusive com reconstituição de ações para nela se espelhar. A criança que está com medo do pai, da mãe ou da professora cria uma narrativa que a proteja das possíveis consequências da verdade.

Um conto, um romance, uma novela, uma crônica, uma fábula, uma notícia, uma biografia são alguns exemplos de narrativas. 

Ler, estudar, entender, habituar-se com a sua estrutura, criar familiaridade com suas dinâmicas, saber quais são os elementos que fazem parte de uma narrativa é de suma importância para ter a capacidade de lidar com o bombardeio de narrativas que nos tentam cooptar diariamente, cooptar nossa mente, nossas emoções, nossa vida.

Já percebeu que são as narrativas de sucesso que estão sendo usadas pelos bancos, pelas financeiras, pelos fabricantes de carros, pelas construtoras e corretoras, pelas grande companhias e por todo o mercado para convencer e atrair clientes? Veja como as propagandas são narrativas com elementos de sucesso, de aventura, de felicidade, de medo, de coragem, de conquista, de ousadia e de tantas coisas que todos querem.

Narrativas têm grande poder e para não ser vítima delas é preciso ter capacidade de leitura.  Saber ler profundamente.

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