Palavras de um homem velho
Vocês
não sentem algo fervendo dentro de vocês, pelo menos de vez em quando?
Nunca
sentiram, como na Terra, uma espécie de vulcão entrando em erupção em suas
entranhas, queimando coração e mente?
Nunca lhes
pareceu que as pessoas estão mortas, frias de tão mortas, geladas, insensíveis?
Será que
tem algo de errado comigo, que ainda na minha velhice sinto estas coisas? E,
triste, vejo meus filhos, jovens, sem tesão, sem vida, sem revolta, sem
revolução, sem tempestades, sem desobediência, sem ousadia, seguindo a manada
que quer ter ao invés de viver, de realizar, de experimentar, de revirar mundo.
E ele nos perguntava.
Vocês
não percebem isso, professores, educadores?
Estão
dormentes também, a pós-modernidade entorpeceu vocês também, foi? Viraram
pregadores de estabilidade e obediência, como aquela que se tem no túmulo?
Será que
só eu vivo estas tempestades internas devastadoras que arrastam tudo que
encontram pela frente, criando caos e um redemoinho de ideias e sentimentos incontrolável
dentro de mim?
E como gosto!
Isto é
uma doença? Ou será que é a cura?
Será que
só eu vejo as pessoas se tornando mornas e insossas?
Até me
dá vontade de chorar quando vejo jovens tão velhos, mas tão velhos e sem vida
que parece que já estão mortos, só que ainda andam e falam e fazem mecanicamente
algumas coisas.
A vida
das pessoas parece de cera. Parece que estamos vivendo um pesadelo em um museu
de cera, com medo que qualquer calorzinho derreta nossas vidas. Tudo tão arrumadinho
e fixo, de uma assepsia e esterilidade nauseante. Mas isso não é próprio do
espírito humano, pelo amor de Deus!
Quando
foi que o sangue virou esta água suja e morna, dentro desta aparência de cera?
Quando
foi que a vida real se tornou esse faz e conta? Uns fazem de conta que vivem,
outros fazem de conta que acreditam e todos fazem de conta que são felizes e
cumpridores de divino destino.
Pro
inferno!
Até parece
que algum tipo de entorpecente está sendo administrado ao gênero humano,
tornando-nos bonecos, autômatos, sem sangue, sem vida.
Coloquem
pimenta nas mamadeiras destes adultos infantis para ver se acordam deste sono profundo
que os faz manter um sorriso amarelo e congelado no rosto, sempre o mesmo para
todas as ocasiões, como o pretinho básico que combina com tudo.
Não se
vive mais, só se roda um software.
Eu poderia continuar escrevendo
as coisas que ouvi daquele homem, mas acho que isso já lhes passa uma ideia da
ideia que ele quis passar.
E eu fiquei como?
Lembrei do esforço que eu fazia
preparando as aulas, elaborando estratégias didáticas e pedagógicas, maneiras diversas
de abordar os assuntos, projetos interdisciplinares para ensinar os conteúdos.
O esforço que eu fazia, e que amava fazer, ministrando as aulas com paixão. Mas
nada empolgava aquelas crianças, aqueles adolescentes e jovens. Nada criava
paixão, nada era capaz emocioná-los, nada os seduzia ou arrepiava, nem mesmo as
viagens. Tudo era chato e cansativo.
Temo que aquele homem velho tem
alguma razão no que disse, pois parece que as pessoas estão perdendo até a
capacidade de chorar, e isto não é um bom sinal. Talvez um dia, por processo de
evolução, venhamos a nascer sem glândulas lacrimais, pois dizem que órgão que
não se usa, se atrofia.
E aí passaremos a nascer sem o
dispositivo da empatia, se é que ele ainda existe. Não há sofrimento ou
injustiça que faça um ser humano da pós modernidade sair do seu lugar, mudar de
rota, mexer em sua vida, a maioria segue o programado. Sempre.
Há uma geração sobre a Terra que
desconhece Fernando Pessoa ou Manuel de Barros, que não vê o menor sentido na
arte e na poesia, que não se emociona ouvindo uma música, diante de uma
paisagem natural ou de um abraço sincero. Tudo é enfadonho.
Já dizia um outro velho sábio:
“sem tesão não há solução.”
E não se trata apenas de uma questão
de escolha, quando um sonha em acumular 1 milhão antes dos 30 anos e outro sonha
em conhecer 30 países, por exemplo. Há algo que é anterior às escolhas feitas. E
é algo sobre educação, sobre os valores que os constituem, que os fazem ser
quem são, é sobre como cada um vê a vida e entende o mundo.
A escolha de acumular 1 milhão
ou conhecer 30 países antes dos 30 anos é só um exemplo para ilustrar que não é
só uma questão de escolha, mas diz quem cada um é, diz sobre a índole de cada
um.
Uma escolha não é um ponto
isolado na linha da vida, ela tem raízes no passado e consequências no futuro.
Ainda que alguém tivesse
alguma vontade de optar por conhecer os 30 países, abrindo mão de acumular 1
milhão, não teria coragem de fazê-lo. Nossa
configuração social não permite esta escolha. Só a faz quem tem rebeldia e
ousadia, quem desobedece.
Mas boa parte desta geração
não vive mais, roda um software, como disse o velho. Por isso não chora mais,
não se arrepia mais, não se emociona, não tem tesão pela vida, não tem coragem,
não desobedece o sistema de crenças, não encara a realidade, não questiona as regras,
os costumes e dogmas.
Sente medo, medo de si próprio, das próprias fraquezas e
limitações.
Isso até me lembra aquela história
da menina que perguntou para a mãe porque tinha que cortar o rabo e a cabeça do
peixe para assá-lo. E a mãe respondeu que não sabia, que tinha aprendido assim
com a sua mãe. Então a menina foi perguntar para a avó, que deu a mesma
resposta, que tinha aprendido assim com sua mãe e assim ensinou para a filha. E
a jovem não se deu por satisfeita e foi perguntar para a bisavó, que respondeu:
“não, minha bisneta, não precisa cortar a cabeça e o rabo, a gente contava
naquela época porque o peixe não cabia na forma que tínhamos, só isso.”
Quem não questiona e não se
questiona fica assim, só repete, sem saber direito o porquê. E repete uma vida
inteira e muitas vezes tem problemas, deseja mudar, mas está condicionado, fica
enredado, preso, porque não ousa perguntar, porque não ousa mudar, chutar o
balde, questionar as regras.
Tá todo mundo muito preocupado
com o que os outros irão dizer, com o que irão pensar, com a imagem que farão,
com a foto, com as aparências.
A pós modernidade tem
produzido criaturas sem sal, sem fogo, sem sangue. Falta pimenta, falta indignação,
ação, numa farofa louca que tire a gente deste chão, desta lona.
O velho está certo: estamos
perdendo alguma coisa, estamos deixando passar alguma coisa importante que nos
poderia mudar a vida e o mundo.
Como se tivéssemos algum poder que estamos desperdiçando.
Como se estivéssemos amarrados por uma folhinha de capim achando que é uma corrente
de aço.
E é quando se sente isso que aquele
vulcão acorda e tudo começa a ferver. Então, gosto de dar atenção. E não jogo água,
jogo gasolina.
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