domingo, 22 de dezembro de 2019

FAROFA DE REBELDIA COM PIMENTA



Palavras de um homem velho



 Ouvi estas palavras de um homem velho, muito velho, que me fez pensar muito, e sentir muito também.

Vocês não sentem algo fervendo dentro de vocês, pelo menos de vez em quando?

Nunca sentiram, como na Terra, uma espécie de vulcão entrando em erupção em suas entranhas, queimando coração e mente?

Nunca lhes pareceu que as pessoas estão mortas, frias de tão mortas, geladas, insensíveis?

Será que tem algo de errado comigo, que ainda na minha velhice sinto estas coisas? E, triste, vejo meus filhos, jovens, sem tesão, sem vida, sem revolta, sem revolução, sem tempestades, sem desobediência, sem ousadia, seguindo a manada que quer ter ao invés de viver, de realizar, de experimentar, de revirar mundo.

E ele nos perguntava.


Vocês não percebem isso, professores, educadores?

Estão dormentes também, a pós-modernidade entorpeceu vocês também, foi? Viraram pregadores de estabilidade e obediência, como aquela que se tem no túmulo?

Será que só eu vivo estas tempestades internas devastadoras que arrastam tudo que encontram pela frente, criando caos e um redemoinho de ideias e sentimentos incontrolável dentro de mim?


 E como gosto!

Isto é uma doença? Ou será que é a cura?

Será que só eu vejo as pessoas se tornando mornas e insossas?

Até me dá vontade de chorar quando vejo jovens tão velhos, mas tão velhos e sem vida que parece que já estão mortos, só que ainda andam e falam e fazem mecanicamente algumas coisas.

A vida das pessoas parece de cera. Parece que estamos vivendo um pesadelo em um museu de cera, com medo que qualquer calorzinho derreta nossas vidas. Tudo tão arrumadinho e fixo, de uma assepsia e esterilidade nauseante. Mas isso não é próprio do espírito humano, pelo amor de Deus!

Quando foi que o sangue virou esta água suja e morna, dentro desta aparência de cera?

Quando foi que a vida real se tornou esse faz e conta? Uns fazem de conta que vivem, outros fazem de conta que acreditam e todos fazem de conta que são felizes e cumpridores de divino destino.

Pro inferno!

Até parece que algum tipo de entorpecente está sendo administrado ao gênero humano, tornando-nos bonecos, autômatos, sem sangue, sem vida.  

Coloquem pimenta nas mamadeiras destes adultos infantis para ver se acordam deste sono profundo que os faz manter um sorriso amarelo e congelado no rosto, sempre o mesmo para todas as ocasiões, como o pretinho básico que combina com tudo.


Não se vive mais, só se roda um software.

Eu poderia continuar escrevendo as coisas que ouvi daquele homem, mas acho que isso já lhes passa uma ideia da ideia que ele quis passar.

E eu fiquei como?


Lembrei do esforço que eu fazia preparando as aulas, elaborando estratégias didáticas e pedagógicas, maneiras diversas de abordar os assuntos, projetos interdisciplinares para ensinar os conteúdos. O esforço que eu fazia, e que amava fazer, ministrando as aulas com paixão. Mas nada empolgava aquelas crianças, aqueles adolescentes e jovens. Nada criava paixão, nada era capaz emocioná-los, nada os seduzia ou arrepiava, nem mesmo as viagens. Tudo era chato e cansativo.

Temo que aquele homem velho tem alguma razão no que disse, pois parece que as pessoas estão perdendo até a capacidade de chorar, e isto não é um bom sinal. Talvez um dia, por processo de evolução, venhamos a nascer sem glândulas lacrimais, pois dizem que órgão que não se usa, se atrofia.

E aí passaremos a nascer sem o dispositivo da empatia, se é que ele ainda existe. Não há sofrimento ou injustiça que faça um ser humano da pós modernidade sair do seu lugar, mudar de rota, mexer em sua vida, a maioria segue o programado. Sempre.


Há uma geração sobre a Terra que desconhece Fernando Pessoa ou Manuel de Barros, que não vê o menor sentido na arte e na poesia, que não se emociona ouvindo uma música, diante de uma paisagem natural ou de um abraço sincero. Tudo é enfadonho.

Já dizia um outro velho sábio: “sem tesão não há solução.”

E não se trata apenas de uma questão de escolha, quando um sonha em acumular 1 milhão antes dos 30 anos e outro sonha em conhecer 30 países, por exemplo. Há algo que é anterior às escolhas feitas. E é algo sobre educação, sobre os valores que os constituem, que os fazem ser quem são, é sobre como cada um vê a vida e entende o mundo.

A escolha de acumular 1 milhão ou conhecer 30 países antes dos 30 anos é só um exemplo para ilustrar que não é só uma questão de escolha, mas diz quem cada um é, diz sobre a índole de cada um.

Uma escolha não é um ponto isolado na linha da vida, ela tem raízes no passado e consequências no futuro.

Ainda que alguém tivesse alguma vontade de optar por conhecer os 30 países, abrindo mão de acumular 1 milhão, não teria coragem de fazê-lo. Nossa configuração social não permite esta escolha. Só a faz quem tem rebeldia e ousadia, quem desobedece.

Mas boa parte desta geração não vive mais, roda um software, como disse o velho. Por isso não chora mais, não se arrepia mais, não se emociona, não tem tesão pela vida, não tem coragem, não desobedece o sistema de crenças, não encara a realidade, não questiona as regras, os costumes e dogmas. 
Sente medo, medo de si próprio, das próprias fraquezas e limitações.


Isso até me lembra aquela história da menina que perguntou para a mãe porque tinha que cortar o rabo e a cabeça do peixe para assá-lo. E a mãe respondeu que não sabia, que tinha aprendido assim com a sua mãe. Então a menina foi perguntar para a avó, que deu a mesma resposta, que tinha aprendido assim com sua mãe e assim ensinou para a filha. E a jovem não se deu por satisfeita e foi perguntar para a bisavó, que respondeu: “não, minha bisneta, não precisa cortar a cabeça e o rabo, a gente contava naquela época porque o peixe não cabia na forma que tínhamos, só isso.”

Quem não questiona e não se questiona fica assim, só repete, sem saber direito o porquê. E repete uma vida inteira e muitas vezes tem problemas, deseja mudar, mas está condicionado, fica enredado, preso, porque não ousa perguntar, porque não ousa mudar, chutar o balde, questionar as regras.

Tá todo mundo muito preocupado com o que os outros irão dizer, com o que irão pensar, com a imagem que farão, com a foto, com as aparências.

A pós modernidade tem produzido criaturas sem sal, sem fogo, sem sangue. Falta pimenta, falta indignação, ação, numa farofa louca que tire a gente deste chão, desta lona.

O velho está certo: estamos perdendo alguma coisa, estamos deixando passar alguma coisa importante que nos poderia mudar a vida e o mundo. 
Como se tivéssemos algum poder que estamos desperdiçando. Como se estivéssemos amarrados por uma folhinha de capim achando que é uma corrente de aço.

E é quando se sente isso que aquele vulcão acorda e tudo começa a ferver. Então, gosto de dar atenção. E não jogo água, jogo gasolina.



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