A entrada
Quando eu tinha 22 anos vi um
cartaz no caminho para o trabalho convidando para uma palestra. O assunto me
interessou, os temas despertaram a minha curiosidade, a palestra seria no
auditório de um colégio, de graça. Fui.
Ao final daquela palestra foi feito
o convite aos presentes para participarem de um curso, totalmente gratuito e
livre, com duração de 6 meses, abordando mais detalhadamente aqueles e outros
temas que também despertaram meu interesse. Segui assistindo ao curso.
Tudo fazia muito sentido,
aliás, parecia que os palestrantes liam meus pensamentos, conheciam minha vida
e falavam diretamente para mim. Era assim que eu ouvia.
Ao final do curso de 6 meses anunciaram
que haveria uma segunda fase do curso, com exercícios e treinamentos para pôr
em prática a teoria que estava sendo estudada. Pois explicaram que somente
teoria não muda a vida de ninguém, para haver transformação era necessário
viver o que aprendemos.
Ah! Já ia esquecendo. Logo no
início do curso apareceram os livros, muitos livros sobre tudo o que nos estava
sendo passado. E eu, que já era um leitor ávido desde a adolescência, é claro,
comecei a comprar e a devorar os tais livros.
Foi
assim que segui participando da segunda fase do curso, aprofundando-me nos
assuntos, querendo saber cada vez mais e também querendo praticar para ver se
eu alcançava as maravilhas que eram prometidas nas teorias e que, ao que
parecia, os palestrantes já desfrutavam. Pelo menos era essa a minha visão da
coisa.
A permanência
A segunda fase durou também 6
meses e depois dela vieram outras fases e outros compromissos e mais
participação e outros livros e revelações e ...
Eu era (acho que era, ou ainda
sou?) uma pessoa que pensava e sentia
Enfim, conheci a instituição completamente,
fiz tudo o que tinha para ser feito, li tudo o que havia para ser lido, passei
a ter contato com os mais altos cargos e comandos do Brasil e do exterior, tornei-me
um palestrante daquela instituição, alcancei certo destaque e arrastei muita
gente para aquele caminho.
Eu era um tipo de missionário,
viajei pelo país fundando escolas, dando palestras, inaugurando cursos como
aquele que me seduziu. Passei a viver somente para aquele conhecimento, de
doações e ajuda dos outros. Eu sentia que havia somente aquilo de importante na
minha vida, que aquilo era a própria vida e não conseguia mais me ver fora daquele
modo de vida.
E desta forma sentia que
aquele conhecimento era a única verdade existente, acreditava nele e por
consequência assumia tudo o que ele trazia. Deste ponto de vista eu passei a
lamentar que tanta gente estivesse fora dele e, portanto, indo pelo caminho errado.
Vivi
pelo menos uns 6 anos envolvido desta forma, casei-me em virtude desta opção, mudei
meu modo de vida, afastei-me de pessoas, morei em várias partes, deixei e neguei
empregos em virtude da minha crença, condenei e critiquei pessoas, investi minha
vida e meu tempo. Não havia limites para o que eu poderia fazer pela minha
crença.
Agora eu era um fanático
Estou contando esta história
para explicar como eu experimentei o que é ser um fanático, o que é o fanatismo
para mim, como eu o vivi e como ele me prejudicou e a outras pessoas.
Há muitos artigos
interessantes na internet sobre fanatismo, fundamentalismo e dogmatismo que é
recomendável ler, pois foram escritos por especialistas no assunto, mestres e
doutores de instituições renomadas, da área da Teologia, da Filosofia, da Psicologia...
Não é neste nível que coloco o assunto aqui, sou um leigo, apenas conto o meu
caso, o resto é com vocês.
Passei a não ouvia mais
ninguém nem nada diferente daquilo que escolhi como verdade. Somente eu,
inspirado pelo conhecimento que adquiri e pelo que estava escrito, tinha razão,
ainda que eu não discutisse. Aliás, não
se discute quando se tem certeza de estar certo. Mas eu não estava.
Somente aquele conhecimento
era correto e tudo o que estivesse fora dele estava errado, ainda que eu não
dissesse isto, era assim que eu entendia em meu íntimo.
Passei a ser capaz de me
afastar de qualquer um por causa daquela minha opção, de passar por qualquer
situação, de suportar tudo e de fazer qualquer mudança para cumprir minha
missão. Nada mais me despertava interesse como aquilo e qualquer palavra contra
minha razão era imediatamente rechaçada. Mesmo que apenas mentalmente.
Sei que, a maneira de outras
patologias, o fanático jamais aceitará que é um fanático. Não adiantava ninguém
me dizer, imediatamente eu recusava e tinha certeza de que eu não era um
fanático. Existiam fanáticos, mas em outras seitas, religiões e organizações,
não na minha que era a verdadeira, que tinha a verdade universal.
De acordo com a minha
experiência, é assim que pensa um fanático. Era assim que eu pensava. Relevando
às vezes porque as pobres pessoas não conheciam a verdade que eu conhecia.
No meu fanatismo não havia
lugar para opiniões diferentes, não havia espaço para outras verdades, elas não
existiam, somente aquela das escrituras que eu seguia. Mesmo que eu olhasse
para as pessoas com condescendência, compreensivo, aceitando a ignorância
delas, mantinha todas fora do meu mundo correto.
A não ser, é claro, que elas
aceitassem incondicionalmente a verdade que eu pregava, aí eu as recebia,
ajudava e conduzia.
Vivi assim por anos. Vivi
momentos agradáveis e desagradáveis. Posso dizer que perdi tempo da minha vida,
encarcerado no fanatismo, que me limitou, manteve-me preso, obtuso, intolerante,
preconceituoso, equivocado e chato, muito chato.
Tomei decisões erradas, fiz
coisas que me prejudicaram, arrumei encrencas que poderiam ter sido evitadas.
Mas o pior mesmo é que
prejudiquei pessoas, muitas pessoas.
Neste
fanatismo convenci muita gente das verdades que eu pregava, fanatizei pessoas, alterei
rotas e vidas, provoquei mudanças nem sempre para melhor, mexi com famílias,
com configurações sociais, com a vida das pessoas.
A libertação
Não sei dizer exatamente o que
eu fiz ou o que aconteceu que fez com que eu saísse daquela prisão, daquele
cárcere do fanatismo. Sei que passei muito trabalho, muitas privações, sofri
bastante. Sei que não sou uma pessoa que se conforma por muito tempo com uma
situação que não está agradável, se eu não estiver visualizando um objetivo
maior.
Lembro-me que um dos estopins
da minha libertação, talvez a semente, foi ver o fanatismo naqueles que me seguiam.
Certo dia um homem, um profissional, pai de família, chegou para mim e
perguntou se ele podia fazer uma festinha de aniversário para comemorar o
primeiro aninho do seu filho mais novo.
Neste momento eu me dei conta de
que antes de eu chegar naquela cidade e começar as palestras e cursos, aquele
homem sabia com segurança o que queria, o que podia, o que devia fazer, de
acordo com a sua própria consciência.
Se eu tivesse dito que ele não
podia fazer a festinha ele teria enfrentado toda a sua família e teria me obedecido
e aquilo me chocou demais, foi como um soco na minha cara.
Mais tarde, eu estava em outra
cidade bem longe da minha terra e trabalhei por um tempo com crianças portadoras
de necessidades especiais. Nesta época meu filho havia nascido, estava com apenas
2 meses.
Então um certo dia eu estava
andando por uma rua daquela cidade e simplesmente uma decisão se instalou em minha
mente, como um facho de luz. “Vou voltar para a minha terra e vou me tornar um professor”.
E foi o que eu fiz.
Claro que não foi tão fácil
assim, as lutas foram muitas, mas muitas, mesmo. Nem meu casamento resistiu às
mudanças que comecei a realizar. Mas já mudei minha vida muitas vezes para
muitos lados diferentes, de variadas formas, esta foi só mais uma. Nunca tive
medo de mudanças, aliás, gosto delas.
Com as minhas mudanças aquela
instituição fez uma assembleia e decidiram por me expulsar formalmente. O que
significava que seus membros não poderia mais ter contato comigo, inclusive minha
esposa e meu patrão na época. Os dois me demitiram.
Algum tempo depois a
instituição se desfez (não por minha causa, é claro). Eu saí praticamente ileso
e até me arrisco a dizer que aprendi algumas coisas úteis. Mas nem todos
tiveram esta sorte, alguns não conseguiram se libertar, teve quem perdeu o juízo,
quem abandonou tudo, mas tudo mesmo, mulher, filhos, riqueza, empresas, e virou
andarilho.
Depois de muito esforço, de
muitas lutas e cicatrizes, entrei para uma Universidade pública, aos 29 anos, e
tornei-me professor.
Nunca mais me senti bem em
influenciar pessoas deliberadamente com fiz naquela época. Entendi que sou apenas
mais um cego e que não posso querer guiar ninguém. Quando tenho certezas, prefiro
questioná-las e, se for o caso, tomá-las somente para mim. Cada um que encontre
as suas.
Aprendi a duras penas que um
cego que acha que vê e quer guiar pessoas é um grande perigo, leva todos para o
abismo. Não guio homens nem me deixo guiar por eles, são apenas homens como eu
e como eu têm visão e entendimento limitados. Podem estar cegos e enganados, mesmo
que tenham certeza absoluta. Sempre há esta possibilidade.
Se depender de mim, cada um
que faça o seu caminho, com toda a liberdade. Que vivam como quiser.
O fanatismo, seja religioso,
político ou relativo a qualquer outra área é uma doença que pode ser curada. É desastrosa,
nefasta e muito perigosa.
Eu, da minha parte, quero
apenas distância, não pretendo cair nesta armadilha de novo.
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