domingo, 5 de janeiro de 2020

EU, FANÁTICO: COMEÇO, MEIO E FIM.



A entrada


Quando eu tinha 22 anos vi um cartaz no caminho para o trabalho convidando para uma palestra. O assunto me interessou, os temas despertaram a minha curiosidade, a palestra seria no auditório de um colégio, de graça. Fui.

Ao final daquela palestra foi feito o convite aos presentes para participarem de um curso, totalmente gratuito e livre, com duração de 6 meses, abordando mais detalhadamente aqueles e outros temas que também despertaram meu interesse. Segui assistindo ao curso.

Tudo fazia muito sentido, aliás, parecia que os palestrantes liam meus pensamentos, conheciam minha vida e falavam diretamente para mim. Era assim que eu ouvia.

Ao final do curso de 6 meses anunciaram que haveria uma segunda fase do curso, com exercícios e treinamentos para pôr em prática a teoria que estava sendo estudada. Pois explicaram que somente teoria não muda a vida de ninguém, para haver transformação era necessário viver o que aprendemos.
Ah! Já ia esquecendo. Logo no início do curso apareceram os livros, muitos livros sobre tudo o que nos estava sendo passado. E eu, que já era um leitor ávido desde a adolescência, é claro, comecei a comprar e a devorar os tais livros.

Foi assim que segui participando da segunda fase do curso, aprofundando-me nos assuntos, querendo saber cada vez mais e também querendo praticar para ver se eu alcançava as maravilhas que eram prometidas nas teorias e que, ao que parecia, os palestrantes já desfrutavam. Pelo menos era essa a minha visão da coisa.

A permanência


A segunda fase durou também 6 meses e depois dela vieram outras fases e outros compromissos e mais participação e outros livros e revelações e ...

Eu era (acho que era, ou ainda sou?) uma pessoa que pensava e sentia
assim: se é para fazer algo mais ou menos, meia boca, se é para não dar tudo de si naquilo em que se crê e quer, então melhor nem se meter, nem começar. Ou é tudo ou é nada, nunca fui muito chegado a meios termos, ao mais ou menos, ao morno. Alguns dizem que é uma característica do signo, sou de escorpião, mas não sei nada disso, só sei que este modo de pensar trouxe problemas para mim. Acho que trouxe coisas boas também.

Enfim, conheci a instituição completamente, fiz tudo o que tinha para ser feito, li tudo o que havia para ser lido, passei a ter contato com os mais altos cargos e comandos do Brasil e do exterior, tornei-me um palestrante daquela instituição, alcancei certo destaque e arrastei muita gente para aquele caminho.

Eu era um tipo de missionário, viajei pelo país fundando escolas, dando palestras, inaugurando cursos como aquele que me seduziu. Passei a viver somente para aquele conhecimento, de doações e ajuda dos outros. Eu sentia que havia somente aquilo de importante na minha vida, que aquilo era a própria vida e não conseguia mais me ver fora daquele modo de vida.

E desta forma sentia que aquele conhecimento era a única verdade existente, acreditava nele e por consequência assumia tudo o que ele trazia. Deste ponto de vista eu passei a lamentar que tanta gente estivesse fora dele e, portanto, indo pelo caminho errado.

Vivi pelo menos uns 6 anos envolvido desta forma, casei-me em virtude desta opção, mudei meu modo de vida, afastei-me de pessoas, morei em várias partes, deixei e neguei empregos em virtude da minha crença, condenei e critiquei pessoas, investi minha vida e meu tempo. Não havia limites para o que eu poderia fazer pela minha crença.

Agora eu era um fanático


Estou contando esta história para explicar como eu experimentei o que é ser um fanático, o que é o fanatismo para mim, como eu o vivi e como ele me prejudicou e a outras pessoas.

Há muitos artigos interessantes na internet sobre fanatismo, fundamentalismo e dogmatismo que é recomendável ler, pois foram escritos por especialistas no assunto, mestres e doutores de instituições renomadas, da área da Teologia, da Filosofia, da Psicologia... Não é neste nível que coloco o assunto aqui, sou um leigo, apenas conto o meu caso, o resto é com vocês.

Passei a não ouvia mais ninguém nem nada diferente daquilo que escolhi como verdade. Somente eu, inspirado pelo conhecimento que adquiri e pelo que estava escrito, tinha razão, ainda que eu não discutisse.  Aliás, não se discute quando se tem certeza de estar certo. Mas eu não estava.

Somente aquele conhecimento era correto e tudo o que estivesse fora dele estava errado, ainda que eu não dissesse isto, era assim que eu entendia em meu íntimo.  

Passei a ser capaz de me afastar de qualquer um por causa daquela minha opção, de passar por qualquer situação, de suportar tudo e de fazer qualquer mudança para cumprir minha missão. Nada mais me despertava interesse como aquilo e qualquer palavra contra minha razão era imediatamente rechaçada. Mesmo que apenas mentalmente.

Sei que, a maneira de outras patologias, o fanático jamais aceitará que é um fanático. Não adiantava ninguém me dizer, imediatamente eu recusava e tinha certeza de que eu não era um fanático. Existiam fanáticos, mas em outras seitas, religiões e organizações, não na minha que era a verdadeira, que tinha a verdade universal.

De acordo com a minha experiência, é assim que pensa um fanático. Era assim que eu pensava. Relevando às vezes porque as pobres pessoas não conheciam a verdade que eu conhecia.

No meu fanatismo não havia lugar para opiniões diferentes, não havia espaço para outras verdades, elas não existiam, somente aquela das escrituras que eu seguia. Mesmo que eu olhasse para as pessoas com condescendência, compreensivo, aceitando a ignorância delas, mantinha todas fora do meu mundo correto.

A não ser, é claro, que elas aceitassem incondicionalmente a verdade que eu pregava, aí eu as recebia, ajudava e conduzia.

Vivi assim por anos. Vivi momentos agradáveis e desagradáveis. Posso dizer que perdi tempo da minha vida, encarcerado no fanatismo, que me limitou, manteve-me preso, obtuso, intolerante, preconceituoso, equivocado e chato, muito chato.

Tomei decisões erradas, fiz coisas que me prejudicaram, arrumei encrencas que poderiam ter sido evitadas.

Mas o pior mesmo é que prejudiquei pessoas, muitas pessoas.

Neste fanatismo convenci muita gente das verdades que eu pregava, fanatizei pessoas, alterei rotas e vidas, provoquei mudanças nem sempre para melhor, mexi com famílias, com configurações sociais, com a vida das pessoas.

A libertação


Não sei dizer exatamente o que eu fiz ou o que aconteceu que fez com que eu saísse daquela prisão, daquele cárcere do fanatismo. Sei que passei muito trabalho, muitas privações, sofri bastante. Sei que não sou uma pessoa que se conforma por muito tempo com uma situação que não está agradável, se eu não estiver visualizando um objetivo maior.

Lembro-me que um dos estopins da minha libertação, talvez a semente, foi ver o fanatismo naqueles que me seguiam. Certo dia um homem, um profissional, pai de família, chegou para mim e perguntou se ele podia fazer uma festinha de aniversário para comemorar o primeiro aninho do seu filho mais novo.

Neste momento eu me dei conta de que antes de eu chegar naquela cidade e começar as palestras e cursos, aquele homem sabia com segurança o que queria, o que podia, o que devia fazer, de acordo com a sua própria consciência.

Se eu tivesse dito que ele não podia fazer a festinha ele teria enfrentado toda a sua família e teria me obedecido e aquilo me chocou demais, foi como um soco na minha cara.

Mais tarde, eu estava em outra cidade bem longe da minha terra e trabalhei por um tempo com crianças portadoras de necessidades especiais. Nesta época meu filho havia nascido, estava com apenas 2 meses.

Então um certo dia eu estava andando por uma rua daquela cidade e simplesmente uma decisão se instalou em minha mente, como um facho de luz. “Vou voltar para a minha terra e vou me tornar um professor”. E foi o que eu fiz.

Claro que não foi tão fácil assim, as lutas foram muitas, mas muitas, mesmo. Nem meu casamento resistiu às mudanças que comecei a realizar. Mas já mudei minha vida muitas vezes para muitos lados diferentes, de variadas formas, esta foi só mais uma. Nunca tive medo de mudanças, aliás, gosto delas.


Com as minhas mudanças aquela instituição fez uma assembleia e decidiram por me expulsar formalmente. O que significava que seus membros não poderia mais ter contato comigo, inclusive minha esposa e meu patrão na época. Os dois me demitiram.

Algum tempo depois a instituição se desfez (não por minha causa, é claro). Eu saí praticamente ileso e até me arrisco a dizer que aprendi algumas coisas úteis. Mas nem todos tiveram esta sorte, alguns não conseguiram se libertar, teve quem perdeu o juízo, quem abandonou tudo, mas tudo mesmo, mulher, filhos, riqueza, empresas, e virou andarilho.

Depois de muito esforço, de muitas lutas e cicatrizes, entrei para uma Universidade pública, aos 29 anos, e tornei-me professor.

Nunca mais me senti bem em influenciar pessoas deliberadamente com fiz naquela época. Entendi que sou apenas mais um cego e que não posso querer guiar ninguém. Quando tenho certezas, prefiro questioná-las e, se for o caso, tomá-las somente para mim. Cada um que encontre as suas.

Aprendi a duras penas que um cego que acha que vê e quer guiar pessoas é um grande perigo, leva todos para o abismo. Não guio homens nem me deixo guiar por eles, são apenas homens como eu e como eu têm visão e entendimento limitados. Podem estar cegos e enganados, mesmo que tenham certeza absoluta. Sempre há esta possibilidade.

Se depender de mim, cada um que faça o seu caminho, com toda a liberdade. Que vivam como quiser.

O fanatismo, seja religioso, político ou relativo a qualquer outra área é uma doença que pode ser curada. É desastrosa, nefasta e muito perigosa.

Eu, da minha parte, quero apenas distância, não pretendo cair nesta armadilha de novo.

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