quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

A CONQUISTA DA FELICIDADE (Bertrand Russell)



Cem anos entre ontem e hoje


A conquista da felicidade é um livro que comprei há muito tempo e não havia lido, ele estava esquecido aqui em casa, até neste início de ano, quando eu procurava algo para ler e dei de cara com ele. 
Então fiquei pensando: 
porque ler, porque não ler, porque ler, porque não ler, acabei lendo.

É uma obra datada dos anos 30 do século XX, em que o filósofo e matemático britânico apresenta suas observações e análises acerca da felicidade e da infelicidade. Ele aborda, de forma simples e clara, em linguagem acessível, diversas áreas da vida humana como trabalho, tédio, excitação, entusiasmo, interesses pessoais e coletivos, sentimento de pecado, preocupação com a opinião dos outros, manias de perseguição, família, carreira, fadiga, inveja, afeição, esforço e resignação entre outros.

Mas o que mais me chamou a atenção neste livro nem foram as análises e observações de Russell acerca de felicidade e da infelicidade, porque entendo, contrariando a palavra de ordem da nossa época, que o que importa mesmo não é ser feliz.

O que me surpreende mesmo é a data do livro, 1930.


O livro foi publicado originalmente em 1930, no Reino Unido, o que significa que as ideias que ele contém foram sendo construídas, pensadas, elaboradas e depois escritas pela mente de um erudito, ao longo dos anos 1920 pelo menos e em ambiente europeu. Russell morreu em 1970, vítima de uma gripe, aos 98 anos. Portanto em 1930 ele tinha 58 anos, foi até aquele momento da sua vida que elaborou e escreveu A Conquista da Felicidade.

Agora, quase que por acaso, o livro cai nas mãos de um brasileiro, nada erudito, 53 anos, quase a mesma idade do autor à época, na entrada dos anos 20, do século XXI, a 100 anos de distância.

E o tema é justamente aquele mais presente na vida das pessoas, o que todos mais perseguem, o que todos mais querem: a felicidade. Tudo o que se faz é na tentativa de ser feliz, cada um à sua maneira. Felicidade é inclusive o que desejamos, pelo menos retoricamente, às pessoas nas datas especiais, aniversários, ano novo...

Mudamos o corpo para sermos felizes, compramos para sermos felizes, estudamos, casamos, nos reproduzimos, trabalhamos e saímos para nos divertir na esperança de sermos felizes. Quem assim não se sente, mantém a esperança de um dia finalmente ser feliz, por obra talvez do acaso ou de algum deus, que seja.

Até me vem à mente a imagem do cachorro que leva uma linguiça amarrada numa vara e presa nele. Já viu isso? Ele anda sempre atrás daquela linguiça na esperança de comê-la, sentindo o cheirinho, sentindo que está tão perto, mas nunca irá alcançá-la, pois não percebe que está presa nele mesmo.

Veja só que curioso o que Russell diz da sua época.


Ele inicia o livro dizendo que se alguém é feliz, deve perceber ao seu redor quantos o são realmente, quantos estão representando que são felizes e quantos são realmente infelizes. Afirma que, se observarmos o comportamento das pessoas, na multidão entregue às horas de trabalho nota-se ansiedade, concentração excessiva, dispepsia, incapacidade para a diversão, desconsideração pelo próximo, indiferença a tudo que não seja a luta cotidiana. Não lhe parece familiar?


Ao longo de todo o livro, enquanto aborda variados aspectos da vida humana, o autor cita situações pessoais e sociais que podem ser causas de infelicidade. E enquanto eu lia até esquecia de vez em quando que ele tinha como referência pelo menos as duas primeiras décadas do século XX e não do século XXI, então eu “atualizava” em minha mente a data do livro para o passado.

Tanto nas questões pessoais como nas sociais, à revelia de toda a “evolução” e da grande diferença que há entre as duas épocas, a vida humana mantém a mesma configuração. Os meios avançaram, a velocidade aumentou, surgiram facilidades e confortos, mas os problemas são os mesmos, foram apenas potencializados. E é claro que temos novos conflitos, próprios da nossa época, que se somam aos que vem de lá, do passado, e aos que são próprios do humano, que parecem eternos, perenes, inabaláveis.

Falando em conflitos humanos perenes e inabaláveis, só abrindo um parêntese, um dia destes, aqui na minha cidade, um irmão matou o outro e a comoção foi geral, todos comentando o horror, o absurdo de um irmão matar o outro. E eu pensei com meus botões, que o fratricídio foi o primeiro assassinado do gênesis judaico/cristão. Parece que Caim abriu os trabalhos e a humanidade se mantém em sua trilha, nada mudou, alguns seguem praticando externamente e outros internamente. Mas o fato é que, de uma forma geral, o homem pouco muda a sua natureza, não importa a época, a tecnologia, a modernidade, os avanços.

A questão da felicidade é colocada por Russell como uma conquista pessoal, individual. Bem no comecinho do livro, a partir da página 13, o autor afirma que já escreveu antes sobre as mudanças que deveriam ser feitas no sistema social (lembre-se, a referência é o início do século XX, no Reino Unido) para favorecer a felicidade. E ele cita algumas das mudanças que sugeriu: descobrir um jeito de evitar as guerras, a exploração econômica e a educação baseada na crueldade e no medo.

Entretanto diz Russel que evitar a guerra é uma necessidade vital para a nossa civilização, mas isso não é possível enquanto os homens forem tão infelizes que “o extermínio mutuo lhes pareça menos terrível do que enfrentar continuamente a luz do dia”. Evitar a perpetuação da pobreza é necessário, mas de que adiantaria todos se tornarem ricos, “se também os ricos são desgraçados?” “A educação na crueldade e no medo é má, mas aqueles que são escravos destas paixões não podem oferecer outro tipo de educação”.

Russell diz então que em A conquista da felicidade resolveu focar na questão individual e pergunta: “Que pode fazer um homem ou uma mulher, aqui e agora, no meio da nossa nostálgica sociedade, para conquistar a felicidade?” Lembrando mais uma vez que esta sociedade, este aqui e agora a que ele se refere, é de 100 anos atrás, mas que surpreendentemente dialoga perfeitamente com nossa época, compartilhando muitas características comuns, feito comadres no chá da tarde, para ser mais britânico.

Seja assassinando irmãos seja amargando a infelicidade, parece que nós, humanos, não temos conseguido evoluir muito nestes aspectos. Mudamos muitas coisas, sim, a violência não é mais a mesma, foi refinada, camuflada, o que pode ser bem pior. Aquela educação na crueldade e no medo a que Russell se refere, por exemplo, agora tem outras embalagens, com cores diferentes, os medos são outros. 


Pode não ser mais o medo de ser espancado pelo professor ou pelo pai, o que não significa que não se use mais a ameaça, a crueldade e o medo na educação. Por exemplo o medo de não corresponder às expectativas, de decepcionar, de não se tornar alguém na vida, de ter que ouvir as lamentações e broncas dos pais, de perder coisas, de perder privilégios, de ser visto como um fracassado, de ser ridicularizado pelos parentes e colegas, de ser rotulado, taxado, carimbado, marcado para sempre.

A crueldade agora vem dos colegas. Se Russell aponta que os mestres eram escravos de paixões que os tornavam cruéis e por isso não podiam oferecer outro tipo de educação, hoje esta crueldade está nos alunos, nos colegas de classe. Ao longo do tempo a crueldade dos mestres, dos pais e das escolas foi transferida para os alunos, como não poderia deixar de ser. A discriminação, a exclusão, a ridicularização, o bullying e até a violência física se faz entre os iguais, o que torna tudo isso bem mais dolorido.

Por isso que quando se lê este Russell de 100 anos atrás temos a sensação de que ele escreveu ontem. O que é bastante triste, ver que não evoluímos na conquista de nossa felicidade. Ao contrário, somos um século mais infelizes, seja como indivíduos seja como sociedade. Talvez tenhamos desenvolvido boas técnicas para camuflar nossa infelicidade, criamos novas máscaras, nos aperfeiçoamos na arte de encenar e nisso realmente evoluímos.

O que Russell não ficou sabendo é que neste início de século somos mais. Mais ansiosos, mais deprimidos, mais medrosos, mais reprimidos, mais solitários, mais individualistas, mais apressados, mais indelicados e mais mentirosos. Se ele visse e comparasse esta época com a que ele viveu, esta sociedade com a sociedade que ele observou, iria ter material para pensar e escrever por mais 100 anos. Mas talvez mudasse o tema e o título fosse: A conquista do humano. Pois parece que primeiro temos que nos tornar humanos, temos que aprender a sermos humanos, para depois pensar em felicidade.

Russell percebeu muito bem, há 100 anos, que não temos possibilidade de construirmos ou pensarmos em um projeto de felicidade coletivamente, como sociedade ou com espécie. Mas ele acreditava na felicidade e achava que individualmente, mediante certos procedimentos, colocando em prática certas técnicas, tomando certos cuidados, sabendo lidar com os próprios fantasmas e proteger-se das nossas humanas mazelas, uma pessoa pode ser feliz.

De minha parte, agora que já li o livro, quero trocar por outro, de preferência um romance que eu não tenha lido e que me interesse. Pode ser uma troca definitiva ou para destrocar depois.
Alguém?

Um comentário: