Cem anos entre ontem e hoje
A conquista da felicidade é um
livro que comprei há muito tempo e não havia lido, ele estava esquecido aqui em
casa, até neste início de ano, quando eu procurava algo para ler e dei de cara
com ele.
Então fiquei pensando:
porque ler, porque não ler, porque ler, porque
não ler, acabei lendo.
É uma obra datada dos anos 30
do século XX, em que o filósofo e matemático britânico apresenta suas
observações e análises acerca da felicidade e da infelicidade. Ele aborda, de
forma simples e clara, em linguagem acessível, diversas áreas da vida humana como
trabalho, tédio, excitação, entusiasmo, interesses pessoais e coletivos,
sentimento de pecado, preocupação com a opinião dos outros, manias de
perseguição, família, carreira, fadiga, inveja, afeição, esforço e resignação
entre outros.
Mas o que mais me chamou a
atenção neste livro nem foram as análises e observações de Russell acerca de
felicidade e da infelicidade, porque entendo, contrariando a palavra de ordem da
nossa época, que o que importa mesmo não é ser
feliz.
O que me surpreende mesmo é a data do livro, 1930.
O livro foi publicado originalmente
em 1930, no Reino Unido, o que significa que as ideias que ele contém foram
sendo construídas, pensadas, elaboradas e depois escritas pela mente de um erudito,
ao longo dos anos 1920 pelo menos e em ambiente europeu. Russell morreu em
1970, vítima de uma gripe, aos 98 anos. Portanto em 1930 ele tinha 58 anos, foi
até aquele momento da sua vida que elaborou e escreveu A Conquista da Felicidade.
Agora, quase que por acaso, o
livro cai nas mãos de um brasileiro, nada erudito, 53 anos, quase a mesma idade
do autor à época, na entrada dos anos 20, do século XXI, a 100 anos de
distância.
E o tema é justamente aquele mais
presente na vida das pessoas, o que todos mais perseguem, o que todos mais
querem: a felicidade. Tudo o que se faz é na tentativa de ser feliz, cada um à
sua maneira. Felicidade é inclusive o que desejamos, pelo menos retoricamente,
às pessoas nas datas especiais, aniversários, ano novo...
Mudamos o corpo para sermos
felizes, compramos para sermos felizes, estudamos, casamos, nos reproduzimos,
trabalhamos e saímos para nos divertir na esperança de sermos felizes. Quem assim
não se sente, mantém a esperança de um dia finalmente ser feliz, por obra
talvez do acaso ou de algum deus, que seja.
Até me vem à mente a imagem do
cachorro que leva uma linguiça amarrada numa vara e presa nele. Já viu isso?
Ele anda sempre atrás daquela linguiça na esperança de comê-la, sentindo o
cheirinho, sentindo que está tão perto, mas nunca irá alcançá-la, pois não percebe
que está presa nele mesmo.
Veja só que curioso o que Russell diz da sua época.
Ele inicia o livro dizendo que
se alguém é feliz, deve perceber ao seu redor quantos o são realmente, quantos
estão representando que são felizes e quantos são realmente infelizes. Afirma
que, se observarmos o comportamento das pessoas, na multidão entregue às horas
de trabalho nota-se ansiedade, concentração excessiva, dispepsia, incapacidade
para a diversão, desconsideração pelo próximo, indiferença a tudo que não seja
a luta cotidiana. Não lhe parece familiar?
Ao longo de todo o livro,
enquanto aborda variados aspectos da vida humana, o autor cita situações
pessoais e sociais que podem ser causas de infelicidade. E enquanto eu lia até esquecia
de vez em quando que ele tinha como referência pelo menos as duas primeiras décadas
do século XX e não do século XXI, então eu “atualizava” em minha mente a data
do livro para o passado.
Tanto nas questões pessoais
como nas sociais, à revelia de toda a “evolução” e da grande diferença que há entre
as duas épocas, a vida humana mantém a mesma configuração. Os meios avançaram,
a velocidade aumentou, surgiram facilidades e confortos, mas os problemas são
os mesmos, foram apenas potencializados. E é claro que temos novos conflitos,
próprios da nossa época, que se somam aos que vem de lá, do passado, e aos que
são próprios do humano, que parecem eternos, perenes, inabaláveis.
Falando em conflitos humanos perenes
e inabaláveis, só abrindo um parêntese, um dia destes, aqui na minha cidade, um
irmão matou o outro e a comoção foi geral, todos comentando o horror, o absurdo
de um irmão matar o outro. E eu pensei com meus botões, que o fratricídio foi o
primeiro assassinado do gênesis judaico/cristão. Parece que Caim abriu os trabalhos
e a humanidade se mantém em sua trilha, nada mudou, alguns seguem praticando
externamente e outros internamente. Mas o fato é que, de uma forma geral, o
homem pouco muda a sua natureza, não importa a época, a tecnologia, a
modernidade, os avanços.
A questão da felicidade é
colocada por Russell como uma conquista pessoal, individual. Bem no comecinho
do livro, a partir da página 13, o autor afirma que já escreveu antes sobre as
mudanças que deveriam ser feitas no sistema social (lembre-se, a referência é o
início do século XX, no Reino Unido) para favorecer a felicidade. E ele cita
algumas das mudanças que sugeriu: descobrir um jeito de evitar as guerras, a
exploração econômica e a educação baseada na crueldade e no medo.
Entretanto diz Russel que evitar
a guerra é uma necessidade vital para a nossa civilização, mas isso não é possível
enquanto os homens forem tão infelizes que “o extermínio mutuo lhes pareça
menos terrível do que enfrentar continuamente a luz do dia”. Evitar a
perpetuação da pobreza é necessário, mas de que adiantaria todos se tornarem
ricos, “se também os ricos são desgraçados?” “A educação na crueldade e no medo
é má, mas aqueles que são escravos destas paixões não podem oferecer outro tipo
de educação”.
Russell diz então que em A
conquista da felicidade resolveu focar na questão individual e pergunta: “Que
pode fazer um homem ou uma mulher, aqui e agora, no meio da nossa nostálgica
sociedade, para conquistar a felicidade?” Lembrando mais uma vez que esta sociedade,
este aqui e agora a que ele se refere, é de 100 anos atrás, mas que surpreendentemente
dialoga perfeitamente com nossa época, compartilhando muitas características
comuns, feito comadres no chá da tarde, para ser mais britânico.
Seja assassinando irmãos seja amargando
a infelicidade, parece que nós, humanos, não temos conseguido evoluir muito
nestes aspectos. Mudamos muitas coisas, sim, a violência não é mais a mesma, foi
refinada, camuflada, o que pode ser bem pior. Aquela educação na crueldade e no
medo a que Russell se refere, por exemplo, agora tem outras embalagens, com
cores diferentes, os medos são outros.
Pode não ser mais o medo de ser
espancado pelo professor ou pelo pai, o que não significa que não se use mais a
ameaça, a crueldade e o medo na educação. Por exemplo o medo de não
corresponder às expectativas, de decepcionar, de não se tornar alguém na vida,
de ter que ouvir as lamentações e broncas dos pais, de perder coisas, de perder
privilégios, de ser visto como um fracassado, de ser ridicularizado pelos
parentes e colegas, de ser rotulado, taxado, carimbado, marcado para sempre.
A crueldade agora vem dos
colegas. Se Russell aponta que os mestres eram escravos de paixões que os
tornavam cruéis e por isso não podiam oferecer outro tipo de educação, hoje
esta crueldade está nos alunos, nos colegas de classe. Ao longo do tempo a
crueldade dos mestres, dos pais e das escolas foi transferida para os alunos,
como não poderia deixar de ser. A discriminação, a exclusão, a ridicularização,
o bullying e até a violência física se faz entre os iguais, o que torna tudo
isso bem mais dolorido.
Por isso que quando se lê este
Russell de 100 anos atrás temos a sensação de que ele escreveu ontem. O que é
bastante triste, ver que não evoluímos na conquista de nossa felicidade. Ao
contrário, somos um século mais infelizes, seja como indivíduos seja como
sociedade. Talvez tenhamos desenvolvido boas técnicas para camuflar nossa infelicidade,
criamos novas máscaras, nos aperfeiçoamos na arte de encenar e nisso realmente evoluímos.
O que Russell não ficou sabendo
é que neste início de século somos mais. Mais ansiosos, mais deprimidos, mais
medrosos, mais reprimidos, mais solitários, mais individualistas, mais
apressados, mais indelicados e mais mentirosos. Se ele visse e comparasse esta época
com a que ele viveu, esta sociedade com a sociedade que ele observou, iria ter
material para pensar e escrever por mais 100 anos. Mas talvez mudasse o tema e
o título fosse: A conquista do humano. Pois parece que primeiro temos que nos
tornar humanos, temos que aprender a sermos humanos, para depois pensar em felicidade.
Russell percebeu muito bem, há
100 anos, que não temos possibilidade de construirmos ou pensarmos em um projeto
de felicidade coletivamente, como sociedade ou com espécie. Mas ele acreditava
na felicidade e achava que individualmente, mediante certos procedimentos, colocando
em prática certas técnicas, tomando certos cuidados, sabendo lidar com os
próprios fantasmas e proteger-se das nossas humanas mazelas, uma pessoa pode
ser feliz.
De minha parte, agora que já
li o livro, quero trocar por outro, de preferência um romance que eu não tenha
lido e que me interesse. Pode ser uma troca definitiva ou para destrocar
depois.
Alguém?
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