quinta-feira, 6 de junho de 2019

INTERPRETAÇÃO DE TEXTO E INTERNET


 Ler é muito mais do que reconhecer letrinhas

Quadro do pintor Almeida Júnior - Leitura

Saber descodificar o código escrito não é saber ler.

Ou seja, saber desvendar os símbolos gráficos (as letras, por exemplo) transformando-os em sons, em palavras, não significa saber ler.

Alguém pode olhar para um papel com a letra do Hino Nacional brasileiro, saber cantar ou declamar lindamente a primeira estofe e não fazer a mínima ideia do que ela está dizendo.

“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
de um povo heroico o brado retumbante.”

Esta pessoa sabe transformar o código escrito em palavras, sabe descodificar a grafia, mas não sabe ler.

Isto é o que se chama de analfabetismo funcional.

Dei o exemplo da letra do Hino Nacional, mas o analfabetismo funcional ocorre com relação a todo texto escrito, como um contrato, uma lei, a pergunta de uma questão de concurso.

Já vi muitos alunos se darem mal em uma prova por não saberem ler a pergunta, por não entender o enunciado da questão.

A pessoa lê, mas não entende o que lê, não compreende, então não lê, não interpreta, não sabe fazer uma leitura do que está escrito.


Saber ler é perceber as intenções, as motivações, os objetivos, as estratégias, a linguagem figurada, os intervalos e pontuações, tanto o que está no texto como o que está fora dele, em seu entorno.

Saber ler vai além do texto escrito, significa saber interpretar o mundo, as falas, as expressões e feições, os gestos, as indiretas, os duplos sentidos, as entrelinhas, as omissões, as pegadinhas e até os silêncios.

E o hipertexto?


Hipertexto é como certos especialistas chamam a web.

A internet é um grande, um enorme, um gigantesco texto escrito por milhões de pessoas, em centenas de idiomas, com milhões de páginas, sendo produzido incessantemente nos mais variados formatos.

Se antigamente alguém tinha uma enciclopédia na estante, com 23 volumes, com origem e autoria bem definidas, com assuntos, conteúdos e formatos limitados pelo livro, agora tem o hipertexto, o texto virtual.

Nele não se tem o controle da autoria nem da origem e nem de conteúdo. E o hipertexto é constituído de texto escrito, áudio, vídeo, gráficos, imagens, etc. Muda constantemente, é dinâmico.

Se uma pessoa tem dificuldade de fazer a leitura de uma estofe do hino do seu país, de uma questão de prova ou de uma cláusula de contrato, como poderá lidar com a leitura do hipertexto?

Não tendo condições de ler, mas tendo que lidar com ele diariamente, quais poderão ser as consequências?

A primeira consequência é aquela mesma que ocorre se alguém come algo que o seu organismo não é capaz de digerir.

Indigestão, intoxicação, congestão, algo deste tipo.

O organismo geralmente põe para fora aquilo que não digere, vomita.

A grande quantidade de informação recebida, mas não lida, não compreendida, é vomitada, é repetida, como fazem os papagaios, ou os robôs, sem saberem direito o que estão fazendo.

Até que toda aquela informação cause uma intoxicação, provoque uma grande confusão e não possa ser aproveitada positivamente, tornando-se disfuncional, uma doença.

Onde se aprende a ler, afinal?


Não basta ir para a escola para aprender a ler, lá nos ensinam a descodificar os símbolos gráficos e, quando muito, nos dão uma pequena noção de leitura, mas não há tempo nem espaço na escola moderna para praticar a leitura.

A escola está  ocupada com a sua função principal, formar “chão de fábrica”, formar a base da pirâmide, o alicerce da sociedade, o que sustentará o alto e servirá ao topo.

A escola está ocupada em “em-formar”, colocar na forma, normatizar as pessoas para que sejam úteis na sociedade, ou seja, para que produzam e consumam, já que sem esta engrenagem a máquina quebra.

Um ou outro que se destaca consegue escapar deste grande moedor de carne. Estes são os que aprenderam a ler, porque foram mais além da escola.
Tem gente que não gosta da escola, com razão, mas é preciso ir muito além dela e não aquém.

O que faz alguém se tornar um bom jogador de futebol, um bom skatista, um bom guitarrista, um bom bailarino?

Treino, treino e treino.

Então o que é necessário para aprender a ler e ser um bom leitor?

Ler, ler e ler.

Desenvolver repertório, familiaridade, conhecimento e profundidade de leitura.

Um leitor bem formado e experiente tem condições de selecionar o que lê e encontrar o que procura e precisa no texto e no hipertexto, formando opinião e pensamento próprios.

Alguém que nunca viu um peixe na vida não sabe escolher, selecionar, definir o mais adequado para as suas necessidades, pode levar o que o vendedor lhe disser que é bom, mesmo estando estragado.

Mergulhado no hipertexto, alguém que não sabe ler ou que mal sabe ler fica a mercê de indicações, do que chega até ele, daquilo que mais se tem repetido, do assunto da moda, da interpretação da moda, dos hiperlinks, dos achismos mascarados de certezas e conhecimento, dos algoritmos, dos robôs.

E um mar de ignorância esperta avança sobre incautos iludidos, que cacarejam razões e empunham bravatas morais vazias.

Em nome do medo de dizer eu não sei, eu não tenho certeza, eu estou em dúvida, eu não conheço este assunto, eu preciso de ajuda, eu preciso pensar melhor, estudar melhor, quero conhecer uma opinião diferente e não vou me posicionar agora.  

Para proteger o orgulho e esconder a ignorância, a garganta vomita o clichê do momento em repetição insuportavelmente oca, surda, estéril, seca.

Tudo por falta de leitura, de interpretação de texto, escrito, falado, desenhado.

Porque não fomos mais além da escola, adiante dela.

Quem fica na escola, reclamando que ela já é muito, já é demais, sai dela sem saber ler e está fadado a repetir o que mandarem, o que estiver na moda, o jargão do momento.

Eu não sei quantos livros eu já li, sei que leio constantemente desde a adolescência, devo ter lido centenas de livros, mas eu sei que não começou na escola, não começou por causa da escola e nunca li nenhum livro na escola.

Meu primeiro livro, o primeiro que lembro, veio de uma prima minha, que me emprestou dizendo ser uma boa história.

O título é Papillon, do escritor francês Henri Charrière, dependendo do formato tem entre 500 e mais de 700 páginas. Devorei em uma semana e daí em diante nunca mais parei de ler.

E foi assim que aprendi a ler, que desenvolvi o gosto e o hábito, foi fora da escola, em casa, trocando livros com amigos e amigas e conversando sobre eles. Depois, bem mais tarde, na faculdade de Letras, apenas aprimorei minha leitura.

E por que este conhecimento é importante?


Pelo mesmo motivo que um soldado não é largado no campo de batalha sem arma nem proteção.

Nossas crianças, adolescentes e jovens mergulham com facilidade no hipertexto e lá permanecem por bastante tempo.

Com que arma? Com qual proteção?

A melhor arma e a melhor proteção é saberem ler e interpretar com profundidade o que tem diante de si. Mas a escola não está ensinando, não está preparando as crianças para isto. Pelo menos não de forma ostensiva e disseminada aqui no Brasil.

Em outros países, como na Finlândia, já é uma matéria, uma disciplina escolar, o ensino da leitura na web, inclusive preparando as crianças para lidar com fake news, ao mesmo tempo em que exercitam a leitura de jornais impressos.

De acordo com várias pesquisas nacionais e internacionais o brasileiro é dos piores leitores do mundo.

E que é professor e professora sabe das dificuldades que nossos estudantes, de uma forma geral, têm com a interpretação e compreensão de textos.

Neste contexto, não saber ler é como ser cego e perambular pela web sem bengala e sem cão guia. A qualquer momento se pode esbarrar com o indesejável e acabar se machucando.

E a cegueira da falta de leitura e interpretação não fica restrita ao hipertexto, estende-se cá para fora, tornando-se um enorme entrave ao desenvolvimento pessoal, em uma sociedade letrada e complexa como esta em que vivemos.





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