Ler é muito mais do que reconhecer letrinhas
Saber descodificar o código
escrito não é saber ler.
Ou seja, saber desvendar os
símbolos gráficos (as letras, por exemplo) transformando-os em sons, em
palavras, não significa saber ler.
Alguém pode olhar para um
papel com a letra do Hino Nacional brasileiro, saber cantar ou declamar
lindamente a primeira estofe e não fazer a mínima ideia do que ela está
dizendo.
“Ouviram
do Ipiranga as margens plácidas
de um
povo heroico o brado retumbante.”
Esta pessoa sabe transformar o
código escrito em palavras, sabe descodificar a grafia, mas não sabe ler.
Isto é o que se chama de
analfabetismo funcional.
Dei o exemplo da letra do Hino
Nacional, mas o analfabetismo funcional ocorre com relação a todo texto escrito,
como um contrato, uma lei, a pergunta de uma questão de concurso.
Já vi muitos alunos se darem
mal em uma prova por não saberem ler a pergunta, por não entender o enunciado
da questão.
A pessoa lê, mas não entende o
que lê, não compreende, então não lê, não interpreta, não sabe fazer uma
leitura do que está escrito.
Saber ler é perceber as
intenções, as motivações, os objetivos, as estratégias, a linguagem figurada,
os intervalos e pontuações, tanto o que está no texto como o que está fora
dele, em seu entorno.
Saber ler vai além do texto
escrito, significa saber interpretar o mundo, as falas, as expressões e
feições, os gestos, as indiretas, os duplos sentidos, as entrelinhas, as
omissões, as pegadinhas e até os silêncios.
E o hipertexto?
Hipertexto é como certos
especialistas chamam a web.
A internet é um grande, um
enorme, um gigantesco texto escrito por milhões de pessoas, em centenas de
idiomas, com milhões de páginas, sendo produzido incessantemente nos mais
variados formatos.
Se antigamente alguém tinha uma
enciclopédia na estante, com 23 volumes, com origem e autoria bem definidas,
com assuntos, conteúdos e formatos limitados pelo livro, agora tem o
hipertexto, o texto virtual.
Nele não se tem o controle da
autoria nem da origem e nem de conteúdo. E o hipertexto é constituído de texto
escrito, áudio, vídeo, gráficos, imagens, etc. Muda constantemente, é dinâmico.
Se uma pessoa tem dificuldade
de fazer a leitura de uma estofe do hino do seu país, de uma questão de prova
ou de uma cláusula de contrato, como poderá lidar com a leitura do hipertexto?
Não tendo condições de ler,
mas tendo que lidar com ele diariamente, quais poderão ser as consequências?
A primeira consequência é
aquela mesma que ocorre se alguém come algo que o seu organismo não é capaz de
digerir.
Indigestão, intoxicação,
congestão, algo deste tipo.
O organismo geralmente põe
para fora aquilo que não digere, vomita.
A grande quantidade de
informação recebida, mas não lida, não compreendida, é vomitada, é repetida,
como fazem os papagaios, ou os robôs, sem saberem direito o que estão fazendo.
Até que toda aquela informação
cause uma intoxicação, provoque uma grande confusão e não possa ser aproveitada
positivamente, tornando-se disfuncional, uma doença.
Onde se aprende a ler, afinal?
Não basta ir para a escola
para aprender a ler, lá nos ensinam a descodificar os símbolos gráficos e,
quando muito, nos dão uma pequena noção de leitura, mas não há tempo nem espaço
na escola moderna para praticar a leitura.
A escola está ocupada com a sua função principal, formar “chão
de fábrica”, formar a base da pirâmide, o alicerce da sociedade, o que
sustentará o alto e servirá ao topo.
A escola está ocupada em “em-formar”,
colocar na forma, normatizar as pessoas para que sejam úteis na sociedade, ou
seja, para que produzam e consumam, já que sem esta engrenagem a máquina quebra.
Um ou outro que se destaca consegue
escapar deste grande moedor de carne. Estes são os que aprenderam a ler, porque
foram mais além da escola.
Tem gente que não gosta da
escola, com razão, mas é preciso ir muito além dela e não aquém.
O que faz alguém se tornar um
bom jogador de futebol, um bom skatista, um bom guitarrista, um bom bailarino?
Treino, treino e treino.
Então o que é necessário para
aprender a ler e ser um bom leitor?
Ler, ler e ler.
Desenvolver repertório,
familiaridade, conhecimento e profundidade de leitura.
Um leitor bem formado e
experiente tem condições de selecionar o que lê e encontrar o que procura e
precisa no texto e no hipertexto, formando opinião e pensamento próprios.
Alguém que nunca viu um peixe na
vida não sabe escolher, selecionar, definir o mais adequado para as suas
necessidades, pode levar o que o vendedor lhe disser que é bom, mesmo estando estragado.
Mergulhado no hipertexto,
alguém que não sabe ler ou que mal sabe ler fica a mercê de indicações, do que
chega até ele, daquilo que mais se tem repetido, do assunto da moda, da
interpretação da moda, dos hiperlinks, dos achismos mascarados de certezas e
conhecimento, dos algoritmos, dos robôs.
E um mar de ignorância esperta
avança sobre incautos iludidos, que cacarejam razões e empunham bravatas morais
vazias.
Em nome do medo de dizer eu
não sei, eu não tenho certeza, eu estou em dúvida, eu não conheço este assunto,
eu preciso de ajuda, eu preciso pensar melhor, estudar melhor, quero conhecer uma
opinião diferente e não vou me posicionar agora.
Para proteger o orgulho e
esconder a ignorância, a garganta vomita o clichê do momento em repetição
insuportavelmente oca, surda, estéril, seca.
Tudo por falta de leitura, de
interpretação de texto, escrito, falado, desenhado.
Porque não fomos mais além da
escola, adiante dela.
Quem fica na escola,
reclamando que ela já é muito, já é demais, sai dela sem saber ler e está
fadado a repetir o que mandarem, o que estiver na moda, o jargão do momento.
Eu não sei quantos livros eu
já li, sei que leio constantemente desde a adolescência, devo ter lido centenas
de livros, mas eu sei que não começou na escola, não começou por causa da
escola e nunca li nenhum livro na escola.
Meu primeiro livro, o primeiro
que lembro, veio de uma prima minha, que me emprestou dizendo ser uma boa
história.
O título é Papillon, do
escritor francês Henri Charrière, dependendo do formato tem entre 500 e mais de
700 páginas. Devorei em uma semana e daí em diante nunca mais parei de ler.
E foi assim que aprendi a ler,
que desenvolvi o gosto e o hábito, foi fora da escola, em casa, trocando livros
com amigos e amigas e conversando sobre eles. Depois, bem mais tarde, na
faculdade de Letras, apenas aprimorei minha leitura.
E por que este conhecimento é importante?
Pelo mesmo motivo que um
soldado não é largado no campo de batalha sem arma nem proteção.
Nossas crianças, adolescentes
e jovens mergulham com facilidade no hipertexto e lá permanecem por bastante
tempo.
Com que arma? Com qual
proteção?
A melhor arma e a melhor
proteção é saberem ler e interpretar com profundidade o que tem diante de si. Mas
a escola não está ensinando, não está preparando as crianças para isto. Pelo
menos não de forma ostensiva e disseminada aqui no Brasil.
Em outros países, como na
Finlândia, já é uma matéria, uma disciplina escolar, o ensino da leitura na
web, inclusive preparando as crianças para lidar com fake news, ao mesmo tempo
em que exercitam a leitura de jornais impressos.
De acordo com várias pesquisas
nacionais e internacionais o brasileiro é dos piores leitores do mundo.
E que é professor e professora
sabe das dificuldades que nossos estudantes, de uma forma geral, têm com a interpretação
e compreensão de textos.
Neste contexto, não saber ler é
como ser cego e perambular pela web sem bengala e sem cão guia. A qualquer
momento se pode esbarrar com o indesejável e acabar se machucando.
E a cegueira da falta de
leitura e interpretação não fica restrita ao hipertexto, estende-se cá para
fora, tornando-se um enorme entrave ao desenvolvimento pessoal, em uma
sociedade letrada e complexa como esta em que vivemos.
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