No bairro onde eu cresci havia
um campinho de futebol em um terreno baldio bem na esquina. Quase todos os dias
a galerinha se reunia lá para uma pelada.
A rua Tiradentes era uma
ladeira e cruzava a avenida Independência bem no pé do morro.
Ali, naquele cruzamento,
ficava, de um lado, o nosso campinho de futebol; do outro lado o bar do seu
Nelo; do outro o CD, era como chamávamos o colégio particular Dignitas, e em frente ao colégio, na outra esquina, era o
escritório de contabilidade do Rui.
Ao lado do escritório, no começo
da subida da ladeira, tinha um terreno baldio, arborizado, com mato alto, onde
havia um galinheiro abandonado, era um barraco de restos de tábuas velhas.
E naquele bairro tinha um
bêbado, era “o bêbado”, porque bêbado não tem nome, é só “o bêbado”, era assim
que nos referíamos a ele.
Era preto feito carvão e tudo
o que fazia era beber. Pedia dinheiro para beber e bebia para pedir dinheiro.
Bebia para dormir e acordava para beber. Todos os dias, o dia inteiro, era
assim que ele vivia: indo do bar para o seu barraco e do barraco ao bar.
Morava naquele terreno baldio,
naquele galinheiro abandonado.
Nunca o vimos com ninguém, não
tinha amigos, era o estorvo do bairro, não tinha serventia alguma, ninguém dava
a mínima atenção para aquele preto bêbado.
Alguns tinham medo dele,
cruzavam a rua e o evitavam por causa do medo ou do cheiro.
Outros lhe davam dinheiro ou
cachaça para ele sair de perto e ficar um tempo entocado naquele seu galinheiro
sujo, bebendo, sem dar ao bairro o desprazer da sua aparência.
Nunca se teve notícia de que
ele tenha cometido algum crime ou feito algo de ruim para alguém, a não ser ter
nascido e existir do jeito que era. E por isso servia de chacota para alguns
garotos, que o chamavam de preto bêbado fedorento.
Mas ninguém podia imaginar que
o bêbado seria capaz de fazer o que fez um dia.
Estávamos jogando no campinho
e eu estava no gol, de onde eu tinha uma visão completa do cruzamento. Devia
ser umas seis horas da tarde, mas ainda não estava escuro.
De lá onde eu estava vi quando
o bêbado saiu do terreno baldio, atravessou a rua e entrou no bar do seu Nelo.
Também vi quando o Rui fechou
o escritório de contabilidade e foi embora, no mesmo momento em que o Boca
passou com seu fusca, descarga aberta, som alto, agitando o bairro como sempre
fazia, ladeira acima.
Não te falei do Boca?
Desculpa, esqueci.
O Boca era o filho do dono da
fábrica de calçados que tinha no bairro, onde metade dos moradores trabalhavam.
Vi um menino de bicicleta
vermelha, devia ter uns 10 anos, vindo na avenida Independência, se aproximando
do bar do seu Nelo, na direção da esquina. Quase no mesmo momento em que o
bêbado saia do bar com algo enrolado em folhas de jornal velho.
O ronco forte do fusca do Boca
surgiu de novo, desta vez ladeira abaixo, em alta velocidade, na direção do
cruzamento.
O garoto de bicicleta não
havia percebido a situação. De onde ele estava não podia ver a ladeira nem o
fusca por causa do bar na esquina e da sua preocupação com o bêbado na calçada.
Paramos o jogo.
O fusca não
parou.
O garoto se aproximou da
esquina.
O bêbado, já perto do
cruzamento, jogou fora o que tinha na mão, saiu correndo, alcançou o garoto da bicicleta
e o empurrou com força, ficando ele mesmo na frente do carro desgovernado que o
acertou em cheio.
O bêbado foi jogado longe, a
garrafa de pinga se estilhaçou no asfalto, o garoto caiu da bicicleta e o fusca
passou direto pelo cruzamento, sem parar.
Corremos todos para ver de
perto, o bêbado jazia inerte no asfalto, corpo mole, quebrado, poça de sangue
embaixo da cabeça, olhos arregalados, lábios entreabertos.
O garoto da bicicleta estava
branco, tremendo, assustado, mas estava bem, apenas uns arranhões.
Da garrafa quebrada no chão exalava
um cheiro forte e adocicado, me aproximei e nas folhas de jornal molhadas de cachaça
ainda pude ler:
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